Projeto da Universidade cria Laboratório Inclusivo para estudantes cegos

Labparatodos recebeu Prêmio de Excelência Acadêmica dos Programas Institucionais de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica

Por Jacqueline Freire - jornalista Fotos: Renner Boldrino
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Hevelyn Oliveira, Muller Ribeiro e Felipe Neves (Fotos: Renner Boldrino)
Hevelyn Oliveira, Muller Ribeiro e Felipe Neves (Fotos: Renner Boldrino)

Incluir e ao mesmo tempo desconstruir a ideia de capacitismo, que é a discriminação de pessoas com deficiência. Esse foi o ponto de partida dos estudantes Felipe Neves e Hevelyn Oliveira com o projeto de pesquisa Labparatodos: Laboratório Virtual e Inclusivo de Parasitologia. O propósito era unir tecnologia assistiva e biologia e a ideia deu tão certo que os dois foram premiados com a Excelência Acadêmica dos Programas Institucionais de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic) e Tecnológica (Pibiti) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Esta é a primeira vez que um projeto dentro de uma universidade brasileira pensa em inclusão antes mesmo de receber estudantes com deficiência. Não há na literatura descrição sobre a aplicação da audiodescrição para imagens microscópicas com fins didáticos. “A Ufal vai acessibilizar lâminas parasitológicas para estudantes com deficiência visual, antes mesmo de receber um deles. É um projeto pioneiro nessa área do saber. Geralmente, as instituições de ensino básico e superior precisam receber estudantes cegos e com baixa visão para só depois se adaptarem a eles”, afirmou Felipe Neves, estudante de curso de Letras e pessoa cega.

Hevelyn Oliveira é mestranda em Educação no Centro de Educação, mas, na época de desenvolvimento do projeto, era estudante do curso de Educação Física. Ela era bolsista do Núcleo de Acessibilidade (NAC) da Ufal e Felipe, assistido pelo mesmo Núcleo. Foi quando o professor Muller Ribeiro, do curso de Biologia, abriu processo seletivo para bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (Pibiti) em 2020-2021 com a intenção de desenvolver um projeto que unia tecnologia assistiva e biologia.

“Na época eu era bolsista do NAC e estava começando a atuar com audiodescrição para produção de conteúdo acessível para o Instagram. Nesse período, fiz algumas pesquisas e cheguei até a conversar com profissionais de outras universidades para entender melhor o que seria a audiodescrição”, explicou Hevelyn.

Esta é a primeira vez que um projeto apresentado por um estudante cego é premiado. Não à toa, Felipe destaca a importância da acessibilidade para o bom andamento do projeto, que visa ser acessível às pessoas cegas e de baixa visão.

“Nós elaboramos um protocolo de audiodescrição para tornar acessíveis as lâminas digitalizadas da disciplina de Parasitologia. Até chegar a mim, enquanto audiodescritor consultor, esse protocolo passa por algumas etapas, como a caracterização das imagens das lâminas e o processo de audiodescrição das imagens. Após isso, compete a mim realizar a revisão e a validação do texto audiodescrito. Por fim, o material é finalizado e entregue aos usuários”, contou o estudante.

O objetivo do projeto é desenvolver uma plataforma virtual composta por um banco de dados de imagens de lâminas parasitológicas de alta resolução, de descrições textuais e audiodescrição das imagens a fim de proporcionar o acesso à informação, eliminar as barreiras impeditivas para estudantes no âmbito da Parasitologia, além de ser suporte às aulas convencionais de Microscopia.

Com isso, é possível o estudo em Morfologia Parasitária sem a obrigatoriedade do uso de um microscópio, garantindo o acesso ao uso do programa por pessoas com deficiência visual, pois são realizadas audiodescrição das imagens por meio de leitores de tela, os quais são feitos em um software sintetizador de voz que transforma informações textuais em informações sonoras.

Após esse trabalho, o material era avaliado pelo coordenador do projeto, professor Muller Ribeiro, que analisava a descrição técnica e a audiodescrição da imagem, verificando se havia coerência da parte técnica com a audiodescrição da imagem, validado ou não. Em caso de não aprovação, o material era devolvido e as observações realizadas pelo docente eram retificadas e encaminhadas novamente para uma nova análise.

Para o professor Muller Ribeiro, o Labparatodos surge do incômodo da ausência de estudantes com deficiência visual nos cursos da área de saúde e do autoquestionamento docente sobre como lidar caso tivéssemos alunos com essa característica. “Os estudos microscópicos das formas parasitárias são importantes para o reconhecimento morfológico e odiagnóstico das infecções por esses agentes. Assim, incorporar tecnologias assistivas ao ensino de Parasitologia ou outras áreas das ciências foi um caminho que abrimos e seguimos na pavimentação”, explicou.

Aplicativo

O projeto Labparatodos busca criar um programa virtual, um aplicativo, que contenha audiodescrição de lâminas parasitológicas. Para isso, no primeiro ano do projeto, o grupo desenvolveu um documento batizado de Protocolo Operação Padrão (POP). “Ele tem o objetivo de apresentar direcionamentos para a construção da audiodescrição de imagem de parasitos, e também possibilitar a construção do aplicativo, ou seja, esse material vai guiar em pequenos passos a construção de um aplicativo acessível, que busca trazer contribuições da audiodescrição para o ensino de biologia, por meio da replicação da técnica de audiodescrição científica e torna o material acessível e disponível a Pessoas com Deficiência Visual”, explicou Hevelyn.

O professor Muller conta mais sobre o aplicativo, que é baseado no conceito de design universal. “É um artefato digital que qualquer indivíduo pode ter acesso, independente das suas características individuais. Logo, permite que qualquer aluno acesse a informação ali apresentada, os que podem enxergar verão a imagem, os alunos cegos ou com baixa visão, podem acessar a imagem pelo texto, e a partir dele acessar a imagem no campo do imagético”, disse.

Ele considera que é importante que a equipe da audiodescrição seja formada por alguém que possa descrever tecnicamente a imagem, alguém que aplique a essa descrição inicial as técnicas de audiodescrição de imagem estática e, por fim, alguém que faça a consultoria dos dados gerados, sendo esta, obrigatoriamente, uma pessoa com deficiência visual.

“A participação de cada elo nesse fluxo é fundamental, e destaco aqui a atuação dos discentes Marianne de Aguiar Vitório Praxedes, do curso de Medicina, Hevelyn Oliveira da Silva, da Educação Física, e Felipe das Neves Vieira, de Letras/Português. Ser premiados com excelência acadêmica por dois anos consecutivos no Cait [Congresso Acadêmico de Iniciação Científica e Tecnológica], aumenta nossa responsabilidade e compromisso com o projeto. Principalmente, quando essa premiação se torna instrumento de inclusão, sendo Felipe, possivelmente, o primeiro aluno cego premiado com tal honraria acadêmica na Ufal”, destacou o professor.

Reconhecimento

O projeto foi apresentado nas edições do 31° Congresso Acadêmico de Iniciação Científica (Pibic) e 14° Congresso Acadêmico de Iniciação Tecnológica (Pibiti), realizados em 2021, de forma virtual; e também no 32° Congresso do Pibic e no 15° Congresso Acadêmico do Pibiti, referente ao ciclo 2021/2022, realizados em novembro do ano passado.

“Estamos muito orgulhosos com o florescimento do Labparatodos e muito felizes com esses primeiros frutos, os quais nos fazem nos engajarmos mais e mais. Para a próxima fase, a nossa expectativa é aplicar o mesmo protocolo de audiodescrição noutras áreas do saber, como a Botânica, Histologia e Patologia; e, além disso, criar um aplicativo para que todos, da universidade ou não, possam acessar os materiais de maneira democrática e equitativa”, revelou Felipe.

Para o estudante, o prêmio é muito significativo, primeiro por ser um reconhecimento do trabalho, mas também por contribuir para a desconstrução do capacitismo. “Essa ideia preconceituosa de que uma pessoa com deficiência é incapaz, urgentemente, precisa ser extinta. O prêmio de Excelência Acadêmica também é uma comprovação de que a cegueira é só um detalhe”, afirmou.

Já o professor Muller avalia o aprendizado que também teve durante os trabalhos. “Felipe muito nos ensinou nesse processo, não apenas na qualidade de discente audiodescritor-consultor do projeto, mas, sobretudo, sobre normalizar a convivência com PcD”, disse.

“Pessoalmente, percebo uma mudança na minha percepção do indivíduo cego. Antes estava imerso nos preconceitos que construímos, hoje me percebo realizando audiodescrição das características físicas de pessoas e espaços, criando materiais didáticos acessíveis e, principalmente, tratando do indivíduo que tenha deficiência como uma pessoa com deficiência e não com um deficiente, uma vez que essa compreensão mostra-se mais humanizada ao ressaltar a pessoa à frente de sua deficiência, valorizando-a independentemente de suas condições físicas, sensoriais ou intelectuais. Essa mudança de percepção foi fundamental e agradeço muito a Felipe”, completou o professor.

Novos projetos

Agora no mestrado, Hevelyn pretende dar continuidade ao trabalho com audiodescrição (AD). “Na minha pesquisa busco validar a ideia de que o projeto seja usado por professores e profissionais que atuem com estudantes com deficiência visual ou que tenham interesse em aprender mais sobre audiodescrição parasitológica. Penso que se os professores estiverem preparados para receber esses estudantes conseguiremos eliminar algumas das barreiras que impedem a entrada e a permanência desses estudantes”, afirmou a mestranda.

O grupo de pesquisa já está desenvolvendo também uma espécie de plataforma virtual, onde será elaborado o código web. “Em breve sairemos de um protótipo para a primeira versão, e a expectativa é que seja entregue ao fim desse ciclo. Agradeço a toda equipe Labparatodos e ao professor Muller pela oportunidade e pelo incentivo. Acredito que todo sucesso do projeto se deve a sua orientação e a sua dedicação. Graças a isso podemos ver uma ideia se tornar realidade e transformar vidas”, comemorou.

A fala de Hevelyn é reiterada pelo estudante Felipe Neves, ao agradecer o apoio e a parceria de seu orientador e dos demais colaboradores da ação: “Minha imensa gratidão ao professor Muller por cogitar esse projeto, por empenhar-se nele e pela pessoa solícita que é. Também estendo minha gratidão aos amigos e colegas que deram e dão vida ao Labparatodos. Desejo que esse projeto seja uma inspiração para os outros e demais instituições, assim teremos uma educação efetivamente inclusiva”, completou.