Consentimento é tema de roda de diálogo na Escola Técnica de Artes

Estudantes e servidoras dos equipamentos culturais próximos à Escola foram o público-alvo

Por Jacqueline Batista - jornalista
Evento trouxe à tona discussões sobre a importância do reconhecimento das violências cotidianamente vivenciadas pelas mulheres
Evento trouxe à tona discussões sobre a importância do reconhecimento das violências cotidianamente vivenciadas pelas mulheres

“Precisamos falar sobre consentimento” foi o tema da roda de diálogo, ocorrida na quinta, 31 de outubro, no auditório da Escola Técnica de Artes (ETA), com o objetivo de trazer à tona discussões sobre a importância do reconhecimento das violências cotidianamente vivenciadas pelas mulheres (seja ela física, moral, psicológica, sexual ou patrimonial, ou perpetrada no âmbito público ou privado). O evento contou com a participação da promotora de justiça do Ministério Público do Estado de Alagoas (MPAL) Ariadne Dantas Meneses e de Telma Low, professora do curso de Psicologia da Ufal. A maioria do público foi formado por mulheres, principalmente servidoras dos equipamentos culturais próximos a ETA.

A Roda de diálogo foi realizada a partir de reflexão proposta pela diretora da ETA, Valéria Nunes, Fabiana Rechembach e Mila Madeira, coordenadoras da Fogueira de Lilith – Um Clube de Leitura Feminista, projeto de extensão desenvolvido pelo Museu Théo Brandão (MTB), pela Faculdade de Serviço Social (FSSO) e pela ETA. “Estabeleceu-se o entendimento da urgência de iniciar o debate pela conceituação de consentimento, isto é, a manifestação livre, informada e inequívoca de vontade, e a identificação de situações abusivas, tanto nas relações sociais, de modo amplo, quanto nas de trabalho, com vistas a auxiliar no desenvolvimento de ferramentas para o reconhecimento das situações de violência impostas e para o seu enfrentamento”, ressaltou Fabiana Rechembach.

Um estupro a cada seis minutos no Brasil

O tema abordado pelas convidadas teve grande participação do público, com dúvidas, relatos e reflexões. Não é à toa que o assunto, apesar de espinhoso, provoca tanto envolvimento. De acordo, com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o país registra um estupro a cada seis minutos. Entre o ano passado e o atual, houve um crescimento de 6,5% nesse tipo de violência contra a mulher no Brasil. Meninas de 10 a 14 anos são as maiores vítimas de violência sexual no Brasil, conforme informações do Fórum.

A professora Telma Low, doutora em estudos de gênero e vasta experiência em saúde sexual reprodutiva e violência de gênero, destaca que tem havido uma perda desse diálogo nos espaços públicos de educação e de saúde por conta de políticas conservadoras, com ideias moralistas. “Quando a gente não traz o foco para esse debate sobre como o consentimento precisa fazer parte de nossa vivência, de nosso processo de desenvolvimento, a gente está colocando em xeque políticas de prevenção de violências, que afetam principalmente os corpos lidos como femininos na nossa sociedade”, afirmou.

‘’Discuto isso em rodas de conversas e há várias professoras, técnicas e estudantes que também vivenciam situações, mas a gente não consegue falar sobre isso porque, muitas vezes, a gente não reconhece e nem identifica como violência porque a gente tem medo, se sente culpada e porque a gente não sabe o que vão fazer com aquilo. Eu não duvido de que todas as mulheres têm uma vivência de violência para contar, de todas as classes, de todas as raças, de todos os territórios, de todas as orientações sexuais e identidades de gênero. Se talvez não se lembra é porque ainda se deu conta que aquilo era violência”, explicou a professora, que também salientou a importância do assunto ser discutido nas universidades e ser necessário a existência de ações institucionais para prevenção, ter um fluxo de políticas que garantam o respeito ao consentimento nos diversos espaços da universidade.

“Por mais que seja um tema que é tão comum e tão caro, a gente ainda não tem espaços para poder falar sobre isso. A gente ainda não tem a garantia de que quando fala sobre isso, vai ter a segurança, apoio, o que torna difícil e desafiador ter esse auditório cheio. É um tema que a gente precisa pensar de forma complexa, ampla, mas também que nos garanta olhar e saber caminhos de como a gente vai poder retomar as nossas histórias e vivenciar os nossos corpos e vivenciar a nossa sexualidade a partir da ideia do meu desejo, daquilo que eu quero, daquilo que me faz bem”, ressaltou Telma.

Deixamos de ser propriedade”

Já a promotora Ariadne Dantas, integrante do Núcleo de Violência contra a Mulher do MP/AL e da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid), destacou que, juridicamente, só a partir da década de 1960, o direito das mulheres passou a ser reconhecido. “Deixamos de ser propriedade para sermos sujeitos de direito. A partir da década de 60, é que a gente vem, de fato, tendo um avanço normativo, legal, considerável. Aos poucos, fomos caminhando para não precisar de autorização do marido para trabalhar, para viajar, para vender um imóvel. Só em 2005, foi retirada a expressão ‘mulher honesta’ do código penal. O que é uma mulher honesta? Quem é que vai valorar uma mulher honesta? O Direito passou a nos proteger, mas o que protegiam? A honra, o recato, a dignidade. E a quem interessa? Aos homens. As nossas conquistas permeavam o interesse do pai e do marido”, disse a operadora do Direito.

Ariadne também abordou a falta de consentimento em situação de embriaguez da mulher. “Os homens precisam parar de fazer sexo com mulheres bêbadas. Ela não bebeu para ser estuprada. Eu perdi o direito de decidir sobre o meu corpo? Beber não é crime. Nenhuma decisão consciente, racional é tomada quando a gente está entorpecida”, disse.

A promotora esclarece que, por diversas questões, nem sempre o ato de violência sexual fica claro para a vítima. “Muitas mulheres sofrem diversas formas de violência e não sabem, não têm consciência. Quem já sofreu, quem já vivenciou alguém que sofreu abuso, sabe que tem essa paralisação da mente. Às vezes, ela passa dias, meses, anos, para perceber que aquilo foi uma violência sexual, principalmente quando isso acontece no ambiente de trabalho e entre pessoas que convivem diariamente. A gente tem a falsa ideia que isso acontece nas periferias, nos interiores, na zona rural, mas isso acontece em todos os espaços”, ressaltou.

Ariadne disse que embora o registro da ocorrência desse tipo de crime seja um processo doloroso para a vítima, vai servir também para ajudar outras mulheres. Sempre quando uma tem coragem de falar, outras também falam. Até a mulher que não percebeu o que estava acontecendo, começa a entender. “Eu, como mulher e operadora do Direito, acho importante todo e qualquer tipo de denúncia. A gente precisa colocar esses limites. Nosso consentimento tem que ser muito claro. Quero crer que a gente já avançou muito em termos de reparação, juridicamente falando. Se pensarmos nos últimos sessenta anos, a gente teve conquistas processuais”, lembrou.

Diferença entre importunação e estupro

A promotora explicou que a importunação é quando alguém satisfaz a própria lascívia, mediante alguma conduta, sem o consentimento do outro. O estupro é a prática de conjunção carnal ou de ato libidinoso, mediante violência ou grave ameaça. Se a mulher estiver alcoolizada, for menor de quatorze anos ou tiver algum tipo de deficiência, é estupro de vulnerável, que é quando não existe consentimento válido. “Nossos tribunais superiores disseram que menor de quatorze não consente, não tem autonomia sexual para consentir”, explicou Ariadne.

A diretora da ETA explicou que a intenção é que essa roda de diálogo seja o ponto de partida para outros eventos que abordem a temática. “A ideia é fortalecer isso aqui na Escola Técnica de Artes, agregar o Museu Théo Brandão, o Espaço Cultural. A ideia é que a gente construa um ambiente seguro, um ambiente de diálogo, de fortalecimento. A proposta é pensar formatos que a gente possa trazer também a sociedade para a Escola para a gente discutir e fortalecer, inclusive de forma criativa e artística. Cada momento que a gente fizer os encontros, eles poderão ter formatos diferentes. Hoje foi uma roda de diálogo, amanhã pode ser uma vivência de um teatro. O importante é trazer mulheres e unir mulheres”, disse Valéria.