Ufal forma a primeira mulher travesti no curso de Jornalismo
O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), tem como foco a vivência da graduada com a população de rua de Maceió
Por Diana Monteiro - jornalista
- Atualizado em
- Atualizado em
Lutas, batalhas e percalços sociais são marcas da trajetória de vida da alagoana Diana Maria Justino de Souza, agora jornalista graduada pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). O tão sonhado diploma chegou e não representa apenas a realização de um ciclo superior concluído. Representa vitória de vida para a recém-graduada, a primeira mulher travesti a se formar no curso de Jornalismo da Ufal.
“A menina sonhadora que no interior se criou, venceu uma grande etapa da vida. Etapa essa que a transformou e a moldou como mulher adulta. Foram seis anos de muita luta, batalhas vencidas mesmo com lágrimas derramadas. Alcei um pequeno voo em minha vida que me levará a muito além. Agora sou bacharela formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas”, comemora Diana, com orgulho. Ela é também a primeira e única pessoa da família a ter curso superior.
O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)), apresentado no iníco de dezembro, é um ensaio sobre a vivência dela com a população de rua de Maceió. Intitulado de Quem sou eu, Sinimbu?, teve como orientadora a professora Magnólia Rejane Martins. A banca examinadora foi composta pelas professoras Laís Barros Falcão de Almeida e Andrea Moreira Gonçalves de Albuquerque, ambas da Ufal.
Sobre o título e a ideia de desenvolver o tema, surgiram na noite do dia 23 de fevereiro de 2023. Final dos festejos carnavalescos em Jaraguá, quando esteve pela primeira vez na Praça Sinimbu para pegar transporte coletivo em direção ao bairro em que residia, casualmente encontrou três jovens travestis, residentes naquele local. A conversa foi fluindo, naturalmente, oportunidade em que a então estudante de Jornalismo tomou conhecimento das dificuldades de vida de quem tem na rua o lugar de moradia. Da invisibilidade social de quem se encontra nessa situação e também da semelhança existente que permeia a realidade de cada uma, principalmente, pela identidade de gênero.
“A princípio, meu intuito era ajudá-las a retificar nome e gênero nos documentos, pois desconheciam que isso seria possível. Devido à falta de documentos originais e até do próprio interesse delas, o plano não deu certo. No trajeto de ida para casa fiquei repensando sobre o que tínhamos conversado, relembrando de toda a movimentação naquela praça, e daí decidi que meu Trabalho de Conclusão de Curso seria voltado para as pessoas em situação de rua e que trataria, em especial, sobre as travestis da Praça Sinimbu”, destaca Diana.
Para desenvolver o trabalho, além dos frequentes contatos mantidos para a realização de entrevistas e mapeamento, compartilhando momentos, Diana Justino também teve a experiência e a vivência da exclusão social a que são submetidas as pessoas que estão na condição de moradoras de rua. Sempre bem recebida, disse ter desenvolvido a pesquisa de campo com tranquilidade. Vivenciou o desalento, um dos malefícios da exclusão e da vulnerabilidade social. “Para poder passar mais tempo na praça entre os moradores, comecei a conciliar trabalho, as tarefas domésticas e as aulas. Inclusive, dormi lá para então me sentir integrada para começar as etapas do trabalho e vi muito de perto as dificuldades. Uma delas, dentre tantas existentes, é a falta de proteção nas noites de frio e ressalto que, na oportunidade em que vivenciei essa realidade, o inverno ainda não tinha chegado. O consumo de bebidas alcoólicas serve como “alento” para as difíceis noites”.
Aprovada com a nota máxima, o Trabalho de Conclusão de Curso foi um ensaio baseado no jornalismo literário, como forma de humanizar as pessoas e contribuir para a quebra dos estigmas e da marginalização social. Diana diz que, além de autora, jornalista, pesquisadora, tornou-se também personagem do projeto. “Passei três meses na praça realizando o processo de pesquisa e de apuração e depois fiquei voltando ao local com menos regularidade”.
Agora, os planos vão além da vontade de exercer a profissão, ela vislumbra o futuro acadêmico como o grande projeto de continuidade de sua formação visando seguir carreira docente. O mestrado, pretende começá-lo já em 2025, seguido do doutorado. Aproveita para dizer da transformação que a educação fez em sua vida. Sempre gostou de estudar e teve identificação com a área de ciências humanas e com a língua portuguesa, desenvolvendo a consciência de que a superação de vida seria pela Educação.
“Desde a infância, eu sabia que o único instrumento para transformação socioeconômica de minha família era a educação. Superei a extrema pobreza, os padrões sociais que impuseram minha identidade de gênero e sobrevivi a diversos tipos de violência. A educação foi o pilar fundamental para a estruturação de quem sou hoje”, afirma.
História de vida
Diana Justino, 25 anos, nasceu em Arapiraca, mas viveu no município de Maribondo e a mudança para Maceió se deu em 2018 para cursar Jornalismo na Ufal. Um novo momento marcante em sua vida. Mas reforça que não teria superados tantos obstáculos, da extrema pobreza vivida a tantos outros percalços, se não tivesse como maior aliada e incentivadora a sua mãe, dona Benedita Justino. “Eu sou a prova de que a educação é transformadora e vem transformando a minha vida. Agradeço à minha mãe, por sempre estar ao meu lado, por sempre ter me permitido ter acesso à escola e isso foi importantíssimo para que eu me tornasse quem eu sou hoje. Ela nos criou ( a outra irmã e o irmão), sozinha, com muita luta”.
E complementou: “Ainda sem palavras, relembro com muita alegria o momento de defesa do meu projeto de conclusão de curso. Estive acompanhada pela pessoa que mais amo, minha mãe, amigos e irmãs. Perante uma banca formada por mulheres inspiradoras, todas doutoras, dotadas de conhecimento e agentes de mudança social. Diana fez também um agradecimento especial à orientadora do trabalho: “À minha orientadora, Magnólia, que se transformou em uma segunda mãe devido ao seu amor e cuidado para comigo, por sua orientação. Às professoras, doutoras que compuseram a banca avaliadora, Andrea Albuquerque e Laís Falcão. Aos inúmeros amigos que estiveram comigo nesse momento e durante o período de graduação. Às minhas mothers e irmã do coletivo @4sdolls que me deram suporte nas fases mais difíceis”.
Enfatiza também que "todo o esforço, todos os acontecimentos que não me mataram, fortaleceram-me. Renderam-me o título de Jornalista com nota máxima. Um trabalho extremamente necessário para a quebra da estigmatização e marginalização social desses indivíduos.
Mudanças, desafios
Para poder estudar na Ufal, Diana Justino foi morar na casa de duas tias, irmãs da mãe. Diz ser grata ao apoio recebido e ainda mais à sua mãe, que continuou no interior e com muito sacrifício custeou os gastos do transporte público para a frequência do curso na Ufal. Com a pandemia, que trouxe período de isolamento social, para reduzir despesas voltou para ficar com a família em Maribondo. Em 2021, retornou à Maceió para trabalhar como atendente de telemarketing. Já passando pela adequação de gênero deixou a casa das tias e foi morar em outro lugar com amigos. Diz que, para a terapia hormonal contou apenas com o apoio da mãe. Num percurso de um novo momento devida, conseguiu um estágio que deu a ela a possibilidade de morar sozinha e escolheu um bairro vizinho ao Campus A. C. Simões.
Enfatiza que a mãe tem severos problemas de saúde, devido ao tabagismo, inclusive esteve internada, pela segunda vez, no momento em que ela retornava às atividades acadêmicas da Ufal. “Foi um momento que passei de muita fragilidade emocional. Também foi um período onde eu tive que “ensinar” as pessoas de como se referirem a mim, de como me tratarem. Sempre fui uma mulher que impunha muito respeito, então não sofri grandes casos de discriminação. Nada me faz arrefecer os ânimos e sempre enfrentei todos os desafios, foram muitos, com muita força, garra para garantir meus direitos e à sobrevivência”.
Nessa fase diz que já havia retificado seus documentos, com entrada no processo de mudança junto à Ufal para o nome social. Aproveita para alertar que a instituição necessita de uma melhor acessibilidade e informações disponíveis para pessoas que necessitem passar pelo processo. Depois de três anos na graduação, foi contemplada com a bolsa de BPC, um suporte financeiro destinado a garantir a permanência de estudantes no curso e no âmbito acadêmico.
Mesmo comemorando uma grande conquista de vida, a formação superior para uma área que considera vocacionada e que sente total identificação, tomando ciência de que o jornalismo era o curso para a sua construção acadêmica, Diana considera o seu percurso exitoso, mas ainda um “retrocesso” . E explica: “Tantos anos do curso de Jornalismo na Ufal e só agora, em 2024, temos a primeira pessoa trans travesti formada. É triste relembrar que eu represento uma minoria, pessoas trans que possuem ensino superior no Brasil. Um país transfóbico e letal às nossas vidas”. Uma realidade que ainda mais fortalece o seu propósito:
“Essa conquista significa muito para mim e espero que signifique para outras também. Quero que outras meninas trans e travestis me vejam como um exemplo de superação e do quão somos capazes de conquistar nossos objetivos, nossos sonhos. Espero que vejam, por meio de mim, que a sociedade não pode ditar onde devemos estar, quais lugares devemos ocupar. Nós somos capazes de ir contra o sistema e ser quem nós almejamos ser. E, ressalto que a educação é uma ferramenta importantíssima para o nosso crescimento pessoal e intelectual”.
E, nesse contexto, de um caminho com muito percalço, mas com muito êxito também, aproveita para fazer sua autodescrição: “Diana É multiartista, escritora, poetisa, pesquisadora, criadora de audiovisual independente, fomentadora da Cultura Ballroom no estado através do grupo House of The Dolls. Diana, nome recebido por Yemanjá, não é apenas uma mulher, um personagem do mundo. Seu desejo é quebrar correntes que a impedem de tornar-se maior, ser a voz dos silenciados, uma agente que dialogue com outros/as para unir forças e realizar transformações sociais por mais simples que pareçam ser, pois a força de uma travesti, de várias travestis é imensurável”.