Pesquisa reforça importância de currículos inclusivos na formação docente
Trabalho apresentado por Eduarda Elisa, primeira aluna trans com o título de mestra pelo PPGECIM, se destacou pelo pioneirismo e alto nível acadêmico
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A egressa da Universidade Federal de Alagoas, Eduarda Elisa, fez história na última terça (11) ao se tornar a primeira mulher trans a conquistar o título de mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PPGECIM/Ufal). A conquista rompe barreiras, perpassa a trajetória de milhares de brasileiros e reforça a importância da presença de pessoas trans nos espaços acadêmicos.
Com a dissertação “O debate sobre gênero e sexualidade nas pesquisas em ensino de ciências e nos projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura em Biologia da Ufal”, de autoria da aluna com orientação do professor Ivanderson Pereira, Elisa buscou em si um tema que a segue desde o ensino médio.
Formada em Pedagogia num país onde, de acordo com a 5ª Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) Graduandos(as) das Ifes, realizada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), menos de 1% do corpo discente de graduação nas instituições federais de ensino superior é trans, a trajetória de Elisa ilumina caminhos e se torna referência para outras pessoas da comunidade.
Pesquisa e vivência
“Eu tive uma aula no ensino médio com uma professora de Biologia, que não fazia parte do currículo. Ela montou [a aula] para sanar nossas dúvidas sobre essas questões de gênero e sexualidades. E estava muito presente na escola. Ela fez uma aula e eu comecei a questionar daí: 'por que gênero e sexualidade não é muito abordado? E quando é abordado, é de forma superficial?'"
Durante a graduação, Elisa percebeu que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não contemplava de forma consistente as discussões sobre gênero e sexualidade. Já no mestrado, aprofundou essa inquietação ao estudar como o tema aparece, ou não, na Prática como Componente Curricular (PCC) dos cursos de Biologia. Foi desse movimento que nasceu sua dissertação.
Ao mesmo tempo em que pesquisava, Elisa também vivia um processo interno profundo. Foi durante o mestrado que ela iniciou sua transição de gênero e, ao unir ciência e experiência pessoal, compreendeu que ambas as trajetórias eram essenciais para revelar ao mundo quem realmente é e qual caminho deseja construir para o futuro. “Foi desafiador porque eu estava em processo de transição. E a gente espera que, por exemplo, a disciplina de Biologia, que fala sobre corpo humano, sexualidade, ciências biológicas, traga mais essas questões. A Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra) vem realizando estudos que comprovam a necessidade de um olhar mais específico, principalmente na educação. Seja nos livros didáticos, seja nos PPCs dos cursos, porque a gente vive numa sociedade em que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, com índices de violência cruéis. Nas escolas, o adolescente trans, gay, lésbica sofre transfobia e LGBTfobia pela ausência de um currículo que mude esse cenário”, explicou.
Ela destaca que seu objetivo é trazer essa discussão para o ambiente docente e que é na base que as transformações acontecem. ”Se a sociedade brasileira desprezar qualquer corpo que desvie da norma, não vamos ter valorização de gênero e sexualidade nos contextos educacionais. E se não discutir na escola, vai discutir onde? Se não se discute na universidade, na formação de professores, como preparar professores para lidar com adolescentes gays ou trans, com uso de banheiro, nome social, direitos básicos, onde iremos?”, reafirmou a estudante.
A dissertação de Elisa foi aprovada pela banca, que destacou o pioneirismo da estudante e o alto nível acadêmico do trabalho. Para o orientador e representante do PPGECIM, professor Ivanderson Pereira, a apresentação foi marcada por emoção e excelência. “Ela apresentou um texto de alta relevância. Chega ao final do mestrado com três publicações em revistas, algo que já não é simples para qualquer estudante. Além disso, desenvolveu um produto educacional. Uma cartilha para subsidiar cursos de formação de professores na discussão sobre travestilidade nos currículos”, destacou.
O professor também ressaltou o rigor metodológico da pesquisa. “Foram três etapas de estudo: bibliográfica, revisão sistemática e documental, que resultaram em um material denso, de alta qualidade, capaz de emocionar qualquer pesquisador do ensino de ciências”, reforçou.
Sobre o marco de Elisa como primeira aluna trans do programa, Ivanderson descreveu o momento como histórico. Para ele, ver pessoas LGBTQIA+, especialmente mulheres trans, alcançando protagonismo acadêmico representa uma virada importante. “Estou muito feliz com o percurso e com o resultado que a Elisa alcança. Ela é uma pesquisadora séria, formada com seriedade, e tem uma trajetória admirável. Consegue existir, resistir e fazer história. Elisa é uma joia, e é um orgulho enorme ter tido a oportunidade de orientá-la”, finalizou.
“Eu me sinto uma referência. Espero que as pessoas vejam isso”
A trajetória de Eduarda Elisa reflete a realidade de muitos brasileiros. Filha de uma empregada doméstica e de um pai que enfrentou problemas com álcool e já faleceu, ela cresceu na comunidade da Grota do Poço Azul, em Maceió, onde ainda vive. Desde cedo, encontrou na educação uma oportunidade de transformar sua própria vida.
Ao terminar sua graduação em 2020, com a chegada da pandemia, Elisa conta que se sentia perdida, mas nunca pensou em desistir. “Dava aula a domicílio, protegida, porque tudo estava sendo afetado, inclusive a educação. Me senti perdida, com medo e ansiosa. Comprei umas coisas para dar reforço em casa e fardamento com o auxílio emergencial. Conheci pessoas incríveis que me incentivaram a não parar de estudar, tentar concurso e ouvi a seguinte frase: 'não importa a velocidade, mas sim a direção, continue…'" relembrou.
Hoje, com 29 anos, além da formação em Pedagogia pela Ufal, possui três pós-graduações e também é concursada pelo Governo do Estado como professora. Elisa enxerga cada passo dado até agora como uma vitória e que seu trabalho contribui para mudanças numa sociedade que não enxerga corpos como o dela como parte do meio científico e acadêmico.
“A gente vive uma cultura cis-heteronormativa, branca, inclusive na produção da ciência. Quando pensamos em cientista, não pensamos numa pessoa trans. Pensamos em um homem branco. A ciência é produzida de forma androcêntrica. Isso é fruto de uma construção social machista, onde só existe um padrão aceitável: a heterossexualidade. Toda sexualidade diferente disso era patologizada e, hoje, mesmo não sendo, continua invisibilizada e sem prestígio”, explicou.
Em sua vivência como uma mulher transexual, ela conta que cada percurso faz parte para que seu trabalho contribua para mudanças na sociedade. “Como sou professora de escola pública, não transicionei só na universidade; transicionei em todos os espaços. Isso impactou porque sofrer transfobia em diferentes espaços afeta como eu produzo e como me vejo no mundo”, contou. “Tudo isso atravessa a escrita da pesquisa. Enquanto mulher trans, sou atravessada por várias questões que repercutem no trabalho científico, nesse caso de forma positiva, porque me deu dimensão da criticidade e relevância social que ele tem para a sociedade”, refletiu.
Na última semana, no mesmo período em que Elisa se formou no mestrado, a Ufal anunciou que terá cota para pessoas trans no próximo Sisu e ela enxerga a atualização, ainda que demorada, um grande feito da universidade. “As cotas na graduação só foram existir agora, em 2025, mas se a pessoa trans não tem direito garantido na graduação, como chega na pós? Nem toda vivência é como a minha. Eu me senti segura porque sou concursada, não dependo financeiramente de ninguém. Mas isso é privilégio. A maioria é excluída desde cedo. É realmente um grande avanço para a Ufal. Pessoas trans existem desde sempre”, comemorou.
Com o título de mestra, Elisa espera que outras pessoas trans sigam a vida acadêmica e que, através dela, acreditem que é possível. “Eu espero que minha produção impacte e seja combustível para outras pessoas. Que entendam que a universidade também é espaço nosso. Num programa com 200 dissertações em 12 anos, serei a primeira mulher trans. As futuras gerações vão ver que foi uma mulher trans que produziu aquele trabalho e que é possível modificar currículos e realidades. Eu me sinto uma referência. Espero que as pessoas vejam isso”, concluiu.