Umas Poucas Palavras: O movimento negro em Alagoas
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Por Sávio de Almeida, matéria publicada em O Jornal no dia 27 de fevereiro
Já é tempo de se ter traçada a história do movimento negro em Alagoas. Espaço, vez em quando, o visita, traz alguma coisinha, mas é necessário, desde logo, começar a documentar com segurança, coletar informações e alguém se interessar por estudá-lo em profundidade, indo desde a vida do povo a instituições como o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Ufal. No caminho desse movimento há a presença de Zezito de Araújo. Ele vem militando desde o tempo em que o Neab se estruturou e tem uma vasta experiência no campo, indo das atividades mais propriamente acadêmicas às políticas e, sem dúvida, tem muito o que dizer. Basta recordar que foi coordenador do Neab da Ufal de 1983 a 2001, tendo, inclusive, uma grande participação no tombamento da Serra da Barriga e nos projetos que se desenvolveram com relação à montagem do Parque Memorial Quilombo dos Palmares.
Este depoimento foi prestado por Zezito ao Grupo Agenda e é necessariamente polêmico em alguns de seus pontos. É extremamente importante que seja discutido, especialmente no que concerne ao Parque Memorial. Eu, pelo menos, sempre achei que a serra deveria ser reflorestada e deixada intocável; seria a melhor forma de honrar a memória de Zumbi. Outros acham que não, e é necessário que o universo da discussão seja aberto, como seria bonito e importante que se partisse para discutir a história do próprio Neab.
Bom, o que Zezito fala está aí: é conferir, discutir. É claro que se pode concordar ou não com ele, mas não se pode negar a importância de sua presença na vida negra de Alagoas.
O que faz Zezito
Professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Coordenador do curso de História do Cesmac-Centro Universitário, membro do Grupo de Estudo sobre a temática Afro-brasileira no curso de História da Fecom/Cesmac e membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Direito, Sociedade e Violência da mesma instituição.
Uma conversa com Zezito de Araújo: o movimento negro (I)
Um pesado começo de vida
Nasci em Cabeça de Porco, distrito de São Luiz do Quitunde. Meus pais eram lavradores. Mamãe sabe ler e escrever. Meu pai era analfabeto, medidor de conta. Nasci lá. Saí em função da separação de meus pais. Fui o primeiro da família a conseguir o 3º grau. Com a separação, minha mãe veio para Maceió distribuir os filhos. Éramos seis irmãos; cada tio ficou com um. Depois minha mãe me chamou novamente pra São Luiz do Quitunde. Voltei para Maceió. Fui interno no colégio do Padre Pinho. Passei lá dez anos. As primeiras letras, eu aprendi lá.
Fui pintor, carpinteiro. A construção de Juvenópolis, a parte nova foi feita por mim. Sou também padeiro.
Ao sair de lá, fui para o Exército. Passei seis anos e meio. Fui recruta, soldado antigo, cabo, fiz curso de sargento e passei. Fiz o vestibular de História, aí fui forcado a fazer a opção: ou seguia a carreira militar ou ia fazer história. Optei pelo curso, porque o capitão que era comandante da minha companhia disse: "Você tem autorização para fazer o vestibular?" Eu disse: "Não". Aí: "Quem mandou você cortar o seu cabelo careca?". Eu disse: "Ninguém". Ele disse: "Pois você não vai mais estudar". Teve alguém que me protegeu. Na época foi o major Dâmaso. E eu fui transferido para CSM. Só trabalhava um expediente e consegui concluir o curso de História justamente na vida militar.
A descoberta da negritude
Eu disse "Eu sou negro" em 1980, quando terminei História. Tive a felicidade de concluir o curso de História em quatro anos, com todo o sacrifício. E o professor Clovis Antunes lecionava duas disciplinas: Antropologia do Brasil I e II; do Brasil I, era do índio; do Brasil II, era do negro... Na época, ele teve que se afastar. Eu fui um aluno regular no curso, monitor vários anos. E a professora Reny Gomide perguntou se eu não queria ser professor colaborador, já que eu tinha concluído o curso e tinha tirado uma boa nota na disciplina. Aí eu disse: "Não, não tem problema, eu vou".
Eu tinha terminado a graduação e jamais poderia jogar fora uma oportunidade daquela. E aí aconteceu um fato que mudou totalmente a minha vida. Uma professora estava voltando do mestrado e disse que eu não poderia lecionar aquela disciplina, Antropologia do Brasil II porque tratava do negro e eu ia reproduzir o racismo na sala de aula. Foi a primeira vez na minha vida que essa questão do racismo tocou fundo em mim. Porque eu estava impedido de exercer algo por ser negro. Eu já tinha passado por outras experiências, mas quanto a essa, não tinha tanto. Inclusive os alunos, depois, vieram conversar isso comigo, eles eram do curso de Serviço Social, que tinha essa disciplina, e também do curso de História. Coincidentemente, em agosto, a universidade foi provocada pelo movimento negro e pelo Projeto Rondon para realizar o Primeiro Encontro Nacional do Parque Histórico do Quilombo de Zumbi dos Palmares. E eu soube que ia acontecer esse evento.
O evento e o movimento
Em Alagoas, não existia movimento negro na concepção que temos hoje. Bom... E lembro ter ficado lá atrás, no auditório Guedes Miranda, e do Abdias Nascimento provocando o João Azevedo: "Professor, como é que a universidade está promovendo este encontro e no seu quadro de professores não há negros?". Foi quando alguém da mesa disse: "Tem o professor Zezito, que está lá atrás". João Azevedo falou: "Nós temos um professor negro, sim, na universidade. Professor Zezito, venha aqui, por favor, para a mesa". Neste momento, eu me vi como negro pela primeira vez na vida. Eu me lembro o dia. Foi no dia 22 de agosto de 1980.
O encontro foi uma promoção da Universidade Federal de Alagoas, do Projeto Rondon. E é bom lembrar que essa discussão da Serra da Barriga já estava em pauta no Projeto Rondon, em 1979. Também estavam aqui a Capes, o CNPQ, o Iphan. O governo federal e vários segmentos do governo do Estado participaram desse evento. E foi a partir daí que comecei a despertar para o que era ser negro.
Tivemos duas pessoas fundamentais no evento: Agnelo, Babalorixá da Casa Branca -tradicional casa de terreiro de Candomblé de Salvador - e a mãe Hilda, do Olê Aiye, a mãe do vovô. Estava aqui Aluísio Magalhães. Ele foi o grande idealizador a nível de governo federal, que puxou a discussão, inclusive financiou projetos. Estava aqui também o professor Formiga, um grande idealizador. O professor Marcos Vilaça, que hoje, se não me engano, é o presidente da Academia Brasileira de Letras, também esteve presente.
Raízes do Memorial Zumbi
O Neab foi resultado desse encontro. Quem estava à testa era Aluísio Galvão, coordenador de Extensão Cultural da Universidade Federal de Alagoas, que também dirigia o Projeto Rondon. A provocação foi feita pela Ematur. A preocupação era criar uma alternativa de turismo para Alagoas. O pessoal de turismo provocou o Projeto Rondon e, a partir daí, se movimentou o CNPQ, através do João Azevedo. Então, primeiro foi o setor de turismo de Alagoas que tinha interesse na história do Quilombo dos Palmares.
Na época desse encontro, o professor Olympio Serra trabalhava no Iphan e sempre foi envolvido com o movimento negro; era da Bahia e irmão do Ordep Serra... Foi quando ele perguntou aos professores Aluísio Magalhães e João Azevedo como era que se discutiria o Quilombo sem a presença dos negros? Foi quando toda a concepção do encontro foi modificada. Então, quem ia discutir o Quilombo dos Palmares eram os acadêmicos. O encontro foi realizado no Centro de Treinamento do Arcebispado.
A Associação Cultural Zumbi
Aqui em Alagoas, nada estava articulado como movimento. Você tinha as casas de terreiros de candomblé, os templos e as federações, mas grupos culturais não existiam, Foi a partir daí que nós pensamos na criação da Associação Cultural Zumbi. O que vai icontecer com o movimento negro em Alagoas? Os seus militantes tinham vínculo com o Estado. Eles não eram profissionais independentes, eram professores do Estado, da universidade, até porque a população alagoana naquela época, que na sua grande maioria era mais negra do que hoje, vivia ia periferia, na miséria. Não tinha acesso a esses equipamentos, que poderiam ajudar em sua organização, e a miséria era muito nais presente do que o pensar na questão de ser negro. É tanto que, quando nós começamos o movimento aqui, a primeira coisa que a Associação Cultural Zumbi realizou foi ir às periferias conversar com o pessoal.
Ela foi fundada em 1981. Eu fui um dos fundadores... Foi Mariano... Fátima Viana, Angela Benedita Bahia de Brito, José Roberto Santos Lima, o Robertinho. Foi o Mariano, o filho daquela grande professora Laura Dantas, o Mariano Marcelino... Então foi um grupo de lideranças jovens negras que tinham vínculos com o Estado. Nesse primeiro encontro de negro só tinha eu. Chegou um professor depois, mas ele não se envolveu; era da área de literatura, escrevia muito, fazia os discursos do Divaldo Suruagy. Edson Alcântara. Um grande companheiro nosso, mas ele não se envolveu.
A montagem do Neab
No sentido de montar o Neab, a primeira ação da Ufal foi convidar o professor Décio Freitas, que deve ter sido a indicação da Capes. Ao chegar, ele não foi pago pela Ufal. Seu primeiro contrato foi feito pelo CNPq. Contratou pra ele vir. Depois foi contratado como professor. O Décio Freitas foi o primeiro diretor, depois nós tivemos o Rogério Gomes; depois passou para o professor Max Lutermann. Na passagem do professor Max para a minha direção, ele deixou de ser centro para ser núcleo. Eu vou residir em União dos Palmares, onde há uma doação da documentação do professor Décio Freitas à Ufal.
Quando a gente pega aqui essa programação de 1980, aí você vê: folguedo folclórico, missa de violeiro, solenidade em União dos Palmares, comemoração no Alto da Serra da Barriga e aqui identificava o aproveitamento do potencial turístico da Serra da Barriga. A Serra da Barriga, nesse momento, estava sendo vista como coisa de negros ou de brancos se aproveitando? E coisa de negro sendo aproveitada pelo branco. Quando eu digo coisa de negro, que era a história dos negros, dos quilombolas, que foi aproveitada pelos brancos.
A Serra da Barriga, inicialmente, foi pensada como um monumento turístico, mas infelizmente resultou nisso agora, recentemente. Eu sei que, às vezes, eu chamava o Sávio, e você dizia: "Zezito, não me chame pra isso não, não me chame pra isso não". O nosso pensamento era resgatar a história quilombola e, decorrente disso, é que haveria uma demanda turística. Os equipamentos que foram construídos lá na Serra da Barriga, hoje, não têm nada a ver com a história do negro, com a história dos africanos.
Aqui, nesse programa [mostra] tem Primeiro Encontro do Parque Histórico Nacional do Zumbi. Que é que era isso? O que é que passava na cabeça quanto ao Parque Histórico Nacional? Foi outra discussão que foi travada. Isso não só nesse período, mas também nos anos posteriores porque qual o sentido do parque? Por isso criou-se o nome Memorial Zumbi. Porque o Parque, ele restringe muito a ação dos movimentos. O Parque São Bartolomeu, lá em Salvador, é terrível. A gestão era muito complicada enquanto parque. Estaríamos entregando uma história negra para a gestão federal? Por isso que as pessoas discordaram desse nome do parque.
Associação Cultural Zumbi
Associação Cultural Zumbi... Ela marcou realmente a nossa ação. Grande parte de seus militantes eram professores. E foi na época que havia todo um clamor dos movimentos sociais no Brasil de uma forma geral, porque nós estávamos saindo da época do golpe de 1964. Estava havendo certa liberação da sociedade brasileira na década de 80. Os movimentos sociais estavam se reorganizando. Então, a Associação Cultural Zumbi também nasceu nesse momento. A Associação dos Professores de Alagoas daquela época foi um grande aliado nosso.
A Alba Correia era presidente, quando tomou as rédeas... Naquela época a Associação de Professores era muita... Ela retomou as rédeas e, coincidentemente, nós éramos associados também à Associação dos Professores... Então, isso nos ajudou muito para que a gente começasse a discutir a questão negra no conteúdo educacional, nas propostas curriculares. E tanto que temos um documento que nós apresentamos em um congresso. A Associação Cultural Zumbi apresentou no Terceiro Congresso Estadual dos Professores de Alagoas. Foi em 1985.
Em 1984, tivemos o Segundo Encontro de Negro do Norte-Nordeste, cuja pauta foi "O negro e a educação", e o resultado dessa pauta eu também tenho. Nós levamos isso para a Secretaria de Educação do Estado, pois, nessa época, a gente não tinha nenhum contato com o município. Nada avançou.
Casa Jorge de Lima
A Casa Jorge de Lima, em União dos Palmares... Lá instalamos o Centro de Estudos Afro-Brasileiro. Eu entrei na universidade no dia 3 de março de 1980, como professor colaborador. No dia 10 de agosto, aliás, em maio, eu fiz o concurso para professor. Fui aprovado e, em agosto, fui contratado. Em 1981, o professor João Azevedo me chamou e disse: "Olha, Zezito, eu tenho uma missão para você. Quero que você vá trabalhar em União dos Palmares para implantar o Centro de Estudos Afro-Brasileiro lá".
Aí eu disse: "Professor, eu não tenho a mínima condição de fazer esse trabalho". Ele disse: "Vou
aumentar sua carga horária, e você vai morar lá". E eu fui. Não tinha o que comer, nem tinha onde dormir... Imagine como era União naquela época. E eu não conhecia ninguém. Não tinha nenhuma experiência. Era o objetivo da Casa Jorge de Lima... Para o professor João Azevedo, era instalar o Centro de Estudos Afro-Brasileiro... E aconteceu realmente. Não na gestão do João Azevedo, mas na do professor Gama. Funcionou. Morei em União em 82, 83 e 84. Todo o trabalho que o governo federal solicitou para o tombamento da Serra da Barriga foi feito pela universidade nesse centro.
Memorial Zumbi e Divaldo Suruagy
Em 1985, o Divaldo Suruagy constituiu o Memorial Zumbi. E aí resolveu montar um grupo de trabalho para tratar do memorial: Noaldo Moreira Dantas, Edmilson, Ismar Gato, Manoel Gomes de Barros, Rosiber, Maria Maria de Castro... Só tinha eu de negro. E olha, veja a data, em 1985. Porque era para dar sustentabilidade ao Memorial Zumbi.
Eu era o representante do Memorial Zumbi aqui. O que isso resultou? Em nada. Não resultou em nada. Porque havia, na época, conflitos de interesses entre a prefeitura e o Memorial Zumbi. O Memorial Zumbi deu uma dimensão a Serra da Barriga nunca vista até hoje. Realmente, tudo o que aconteceu em União dos Palmares, nós tivemos que reconhecer que foi um trabalho do Memorial Zumbi, que estava à frente. No primeiro momento, o Olympio e depois o professor Abdias Nascimento estiveram responsáveis.
Mas não nos reunimos nunca. Quem tentou nos reunir, e tem que se reconhecer, foi o Noaldo Dantas, que tentou algumas vezes fazer alguma coisa juntamente com a diretoria do Memorial Zumbi. O Noaldo Dantas era secretário de Cultura na época.
O pastoril na serra
Todas as celebrações que foram realizadas na Serra da Barriga foram feitas pelo Memorial Zumbi. Começou com a grande professora Carrascosa... Nós não tínhamos, em Alagoas, qualquer atividade cultural negra. Então, a gente levava pra lá as baianas, a taieira, o maculelê... Quem fazia isso era, inclusive, a Maria Carrascosa, vinculada diretamente à universidade, ao que era a Pró-Reitoria de Extensão.
Tinha o pastoril... Era isso que a gente celebrava lá em União dos Palmares. De certa forma pegava o que eles chamavam de folclore e levava para lá. Isso, talvez, durante os quatro primeiros anos foi, mas depois... Evidentemente que vinha da Bahia, o Ilê Aiyê vinha para completar, o Olodum vinha, o Muzenza vinha... Mas, aqui de Alagoas, nós não tínhamos nada, nada mesmo.