Imortal da ABL, Krenak quer abrir caminho para outras formas de ver o mundo

Ele também chamou atenção para a possibilidade de pensar e agir diferente, ocupar espaços e despertar reflexões a quem se proponha ler e refletir

Por Deriky Pereira e Mariana Lima – jornalistas - Fotos: Mitchel Leonardo (Ascom Bienal)
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Aílton Krenak agora é imortal! Com 23 votos, o indígena, escritor e ativista ambiental foi eleito na última quinta-feira (5) para a Academia Brasileira de Letras (ABL) e ocupará a cadeira nº 5, que pertenceu a José Murilo de Carvalho, falecido em agosto. Recentemente, Aílton Krenak esteve em Maceió para participar da 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas, onde concedeu entrevista exclusiva.

Com um histórico de luta política pelos direitos indígenas e do meio ambiente desde a Assembleia Constituinte, Krenak não apenas fala sobre, mas tem outra forma de viver e encarar o mundo: outro ritmo de tempo, uma fruição da vida ligada à terra e resistindo à pressão do mundo mais acelerado, consumista e conectado virtualmente e apenas virtualmente, sem contato direto com a natureza da qual somos parte.

Segundo Merval Pereira, presidente da Academia, Krenak é um poeta com visão de mundo bem pessoal e apropriada para o momento. “O momento em que o mundo está preocupado com o meio ambiente, em que os povos originários lutam por seus direitos. Tudo isso está embutido na vitória de Krenak na Academia. É um indígena que trabalha com a cultura indígena, com a valorização da oralidade”, salientou.

Primeiro indígena a ocupar uma cadeira na ABL, Krenak diz que a Academia reconheceu a necessidade de fazer uma reparação histórica a partir de sua indicação. “Eu falei isso com o pessoal que faz a gestão da coisa, eles me disseram: Nós queremos, no ato de trazer um indígena para a Academia, avançar na reparação histórica que essa instituição deve àqueles que ficaram fora”, recordou o ativista.

E disse mais: “Se a Academia está achando que está botando UM sujeito lá, eles estão enganados, porque quando põe um de nós, implica em dizer que a literatura indígena está presente aqui e que ela tem acesso a esse lugar. E que os jovens, as crianças, os meninos indígenas daqui para frente vão incluir esse lugar nos possíveis trajetos deles na sua vida”, refletiu.

Krenak esteve na 10ª Bienal do Livro de Alagoas, realizada em Maceió, no período de 11 a 20 de agosto passado, onde concedeu entrevista a equipe de imprensa do evento, por meio da jornalista Mariana Lima.

Apresentamos abaixo a entrevista de Ailton Krenak que, dentre tantos pontos, falou sobre a possibilidade de pensar e agir diferente, ocupar espaços e despertar reflexões a quem se proponha ler e refletir. Ele também destacou a importância da Bienal de Alagoas, única do segmento no país realizada por uma universidade pública e que conta com acesso gratuito à população.

Se você não o conhece, aproveite a entrevista para conhecer este grande pensador e suas ideias para adiar o fim do mundo. Se já o conhece, confira mais um pouco daquele que sempre nos lembra que há mais na vida do que apenas considerar a utilidade das coisas e ações.

Mariana Lima – A Bienal do Livro de Alagoas é a única que é gratuita, promovida por universidade pública federal. Muitas publicações lá são fruto de produção científica editada por universidades e um espaço em que muitos jovens e crianças têm o primeiro contato com livros, teatro, declamação de poesia. Em sua opinião, qual a importância de espaços como esse?

Aílton Krenak – O espaço das bienais, das festas literárias, das feiras de livro no nosso país, ele ainda é tão limitado, que uma universidade se pôr na responsabilidade de promover uma Bienal é muito bom, é excelente e deveria ser acompanhado por outras universidades nossas, principalmente na Amazônia, onde não acontece bienal de livro, porque ninguém lá, além da própria universidade, está interessada nisso. Então as universidades deveriam ser vanguarda nesse campo de promover a leitura. Não estou nem pensando na ideia do livro no sentido comercial, de vender livro, mas de promover a leitura, pensar maneiras de tornar acessível a leitura para a meninada e a importância de oferecer outras perspectivas para essas novas gerações.

Eu sei que no Sudeste tem Bienal em tudo quanto é esquina, a minha pergunta: é por que as editoras, que gostam tanto de ocupar com estandes as bienais no Sudeste, ignoram que existe gente no resto do país? Eu estou falando Sudeste [no sentido de] Brasília para baixo. Mesmo Belo Horizonte, que é uma capital de relevância nessa região, não tem a mesma capacidade de convocar as editoras para botar seus estandes lá. Então eu acho que a universidade tem essa função, é legítimo a universidade chamar os outros colaboradores e liderar o processo de organizar essas feiras de livros.

Essa Bienal aqui em Alagoas me surpreendeu em muitos sentidos. Ela surpreendeu porque convoca um tipo de público que tem formação e é diferente de você convocar um público plural que você fala com 200, 300 pessoas e não tem a menor ideia do que eles estão ouvindo, o que eles estão buscando. Eu senti que essa Bienal tem um trabalho de formar leitores, ela forma leitores críticos.

A experiência que eu tive com aquele auditório lotado de gente, prestando a maior atenção, com a disposição para diálogo que quando abriu para debate a gente podia ficar ali a noite inteira conversando, que quando teve a oportunidade de se manifestar, se manifestaram sempre da maneira crítica e esse tipo de comunidade crítica faz a diferença. Agora você botar um monte de gente num espaço livreiro só para especular, vender livro, comprar livro é o que mais acontece. A gente precisa cultivar essa diferença de pessoas que vão para esses espaços para experimentar novas ideias, mesmo que eles não comprem livro nenhum.

De vez em quando, alguém chega para mim e fala assim: olha, eu não trouxe o meu livro, mas eu queria que você assinasse. Aí, me dá uma folha, pede para assinar para um amigo, e eu falo: que ótimo!. Eu acolho essa presença com o mesmo entusiasmo que alguém chega lá com dois livros para assinar, porque aquela pessoa veio ali para ouvir, para conversar, para debater e ela quer estender a experiência dela além daquela audiência. Pessoas que me falam que estão lendo o livro, que está usando na sala de aula para as crianças, que tem menino de 10 anos que já está lendo meus livros. Nossa, isso é um presente incomparável!

ML – Aproveito para trazer um pequeno “causo” com seu livro “A vida não é útil”, que você comemora crianças de 10 anos lendo, mas também podemos encontrar o seu nome e suas frases em listas na internet “Veja aqui pensadores que você pode citar no Enem” e aí temos jovens decorando suas palavras e de outros no intuito único e exclusivo de tentar encaixar aquilo numa redação do Enem. Então eles lhe consomem, mas não refletem. O que você pensa disso, dessa “utilidade” justamente do “A vida não é útil”?

AK – Olha, é interessante olhar nessa perspectiva crítica, mas veja bem: se uma centena de meninos usarem essa estratégia de colar, porque isso é uma cola, para poder ser admitido no exame, pelo menos uns dez deles vão ficar contagiados com a mania de pensar. E se eles ficarem contagiados com a mania de pensar, a gente pode ter esperança e pode considerar que o risco da utilidade está dentro do campo possível, ele não extrapolou esse campo, ele não virou um livro de autoajuda.

Porque se a gente aponta a vocação e a tendência que somos induzidos a dar utilidade à experiência da vida, nós não podemos renunciar também de formar novas capacidades, de despertar novas capacidades de pensar o mundo. Então eu acho que vale o risco. E não desautoriza o título: a chamada “A vida não é útil” é um lema que convida para entrar e ver em que sentido ela se aplica.

Acho que é muito bom que você traga essa questão, os meninos pelo menos estão sendo expostos a um pensamento radical e se eles colarem um pensamento radical, o máximo de dano que eles podem se causar é de serem percebidos como oportunistas.

ML – Pois o pensamento é colonial, não é?

AK – Não é? Ele [o menino] vai entrar em contato com o pensamento crítico, e mesmo quando ele cola, quem olhar vai se perguntar “o que esse cara está falando?”. [Ailton pega o livro da mesa, abre em uma página específica e recita] “Não sou um pregador do apocalipse, o que tento é compartilhar a mensagem de um outro mundo possível”.

Agora, que recurso eu vou usar para fazer isso? Eu vou ter que usar algum recurso que está no campo das interações, das ideias. Pode ser um filme, pode ser um livro, pode ser um espetáculo, uma peça de teatro. Eu fui convidado para fazer uma releitura de O Guarani, do Carlos Gomes. Aquele era um desafio maior do que eu, me senti uma formiga, mas eu encarei e o resultado foi impressionante.

O Teatro Municipal de São Paulo lotou em todas as apresentações. A mídia conservadora disse que “a elite cultural de São Paulo contratou o identitário Ailton Krenak para destruir Carlos Gomes”. Eu falei: pô, será que eu estou com essa bola toda? Eu vou destruir o Carlos Gomes?. Sabe como é que eles exageram, não é? E eu sou um identitário, eu fui logo correndo para ver o que é um identitário. Mas no dicionário deles, que é totalmente fascista, não é? Para eles, Carla Akotirene é uma identitária. Para esses caras que me acusam, sei lá, a Marielle [Franco] era uma identitária, então assim, o quê que você vai fazer para vocês caras? Ou você os põe num campo de oposição crítica do pensamento ou você ignora, entendeu? Como diria James Brown, vocês viram para eles e falam: f*****.

ML – Falando sobre o tema decolonial, você acha que, hoje em dia, há mais interesse no tema da decolonização e que as redes sociais, ampliando essas vozes diferentes e os caminhos de conversa, ajudaram a aumentar esse interesse?

AK – Olha, talvez as redes sociais não tenham feito exatamente ampliar… Talvez, o que elas tenham feito foi embaralhar, bagunçar, embaralhar tudo. Embaralharam o debate a ponto de sugerir que isso virou um tema compartilhado globalmente, que isso está em todos os lugares, é mentira. Isso está em alguns nichos, em alguns lugares, sendo que a grande massa mesmo das nossas populações sequer atina com a ideia do que é decolonial ou descolonizar ou decolonizar. Tem alguns que ainda acham que tem uma diferença entre decolonizar e descolonizar.

O Nego Bispo, que eu gosto muito das observações dele, diz que trata–se de ser contra–colonial, não basta você descolonizar, tem que ser contra–colonial, que eu acho que é radical. Tipo assim, não basta descolonizar, porque senão você descoloniza e depois fica parecendo que você está fazendo um greenwashing [“banho verde”, termo que indica falsas práticas ou apropriação de virtudes ambientalistas por parte de organizações ou pessoas]. Você põe um ar de sustentabilidade, uma faixinha e vai continuar fazendo mais do mesmo.

ML – Mas é um exercício de perspectiva…

AK – É um exercício, mas ele acontece num campo, num gradiente que fica só de boa, só anda para dentro, não sai fora disso. Talvez seja por isso que a gente fica tão refém dessas narrativas ambíguas.

ML – Professor, o senhor nos convida a uma reflexão sobre outras possibilidades, não nem “novas”, mas “outras possibilidades” de viver em sociedade e mesmo assim ainda tem gente que se sente preso ao padrão atual, que ouve o que você fala e entende que é preciso mudar, mas não sabe como agir, o que fazer, como colaborar para mudar. O que o senhor tem a dizer para essas pessoas?

AK – Quando eu publiquei Ideias para Adiar o Fim do Mundo, teve gente que me interpelou se aquilo era um guia, um roteiro para adiarmos o fim do mundo. Eu falei que não, que [o livro] não é uma caixa de primeiros socorros, são ideias. São ideias. E, se são ideias, significa que elas não são receita e que não tem receita.

A experiência tem que ser cotidiana, tem que ser todo dia, toda hora e mais radicalmente, significa que a experiência vai ser cada vez mais individual. Vai ser a experiência de si. Essa ideia da gente fazer revolução, da gente convocar todo mundo, nós mesmos já discutimos que ela ficou no século 20.

Leia mais sobre a participação de Aílton Krenak durante a 10ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas aqui e aqui.