Pesquisa resgata histórias de pessoas que passaram abandono na infância

Doutorado de Cícero Santos reforça a importância de estruturas institucionalizadas para que crianças desassistidas possam ter condições de superar a situação de vulnerabilidade social

Por Thâmara Gonzaga – jornalista
- Atualizado em
Cícero Santos pesquisou e resgatou a história de pessoas que passaram por situação de abandono quando crianças
Cícero Santos pesquisou e resgatou a história de pessoas que passaram por situação de abandono quando crianças

Ter o que comer, vestir, estudar e um lugar seguro para morar. Direitos fundamentais que deveriam ser assegurados a todos, mas que são inacessíveis para muitas crianças brasileiras que vivem em situação de rua. Conforme informações do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), consultadas no site do ministério no dia 27 de novembro, o Brasil tem 349.901 famílias em situação de rua inscritas no Cadastro Único do governo federal. Números que podem ser ainda maiores se considerar as subnotificações.

Foi essa realidade do “sem ter” que direcionou o doutorado de Cícero Santos, secretário-executivo da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), ao pesquisar sobre a importância de estruturas institucionalizadas, mantidas diretamente pelo Estado ou por meio de fundações, para que crianças pobres e desassistidas possam ter condições de superar a situação de vulnerabilidade social.

O estudo, realizado na Universidade do Porto, em Portugal, ouviu e contou a história de pessoas que, assim como Cícero, foram retiradas da situação de abandono das ruas, quando ainda eram crianças, e encaminhadas para a Fundação de Amparo ao Menor, instituição fundada pela professora Lourdes Monteiro e que, desde a década de 1980, vem mudando a realidade da infância e juventude pobre de Palmeira dos Índios, Alagoas.

“Durante a pesquisa, eu busquei compreender de que maneira o ser institucionalizado interferiu na vida dessas pessoas, partindo da minha própria história de vida. O que encontrei foram pessoas que justificam e reconhecem o papel da instituição [Fundanor] como algo positivo e que deu novas esperanças e significados às suas trajetórias de vida”, contou.

O trabalho, informa Cícero, teve como direcionamento a metodologia de “narrativas e histórias de vida”, revelando as amplas possibilidades da atividade de pesquisa, no sentido de compreender melhor o mundo em que vivemos, e que não se limitam apenas a números e relatos imparciais.  “A escolha dessa temática se deu principalmente pela descoberta de metodologias que foram muito significativas para mim, pois eu não conhecia essas ferramentas. Isso me deu a oportunidade de conhecer o lugar e as pessoas que fizeram parte da minha infância, compreender o percurso de vida ou formativo dessas pessoas que, assim como eu, passaram pelo processo de institucionalização”, afirmou.

 Ao longo da pesquisa, ele conta que teve acesso a poucos documentos sobre a fundação, como relatórios institucionais, atas, registros de meninos e meninas. No entanto, revela, as entrevistas foram fundamentais para alcançar os objetivos da pesquisa. No total, Cícero conseguiu entrevistar 32 pessoas, sendo 17 ex-moradores da casa Fundanor e 15 adultos que atuaram como trabalhadores ou dirigentes da fundação.

 “São histórias de pessoas que passaram por tanta coisa e, mesmo assim, encontraram formas de continuar. A história da Fundanor e dos autores sociais que permeavam aquele lugar merecia ser partilhada”, ressaltou.

Compreender a própria história de vida

O desejo de compreender sua história de vida e vivência foi a motivação do servidor para trabalhar o tema no doutorado. Quem o encontra, hoje, na condição de servidor público federal e doutor em Ciências da Educação por uma universidade estrangeira, não imagina o caminho que ele percorreu até conquistar o “próprio ter”.

O Cícero criança viveu uma infância difícil, marcada pela extrema pobreza, pela violência doméstica e outros abusos. Fugiu de casa aos 7 anos e sobreviveu nas ruas até os dez anos quando, então, foi encaminhado para a Fundanor, local onde teve a oportunidade de “esperançar e mudar a própria história”. Tantas situações e histórias. Era preciso entender, ressignificar tudo isso e Cícero o fez pela via da pesquisa.

“Mergulhei nas minhas memórias para que eu pudesse compreender as vias que me trouxeram até aqui. A história do ‘pequeno Cícero’ me acompanha sempre. É como se eu segurasse a minha criança interior e dissesse para ela nunca desistir. Eu não tive uma infância fácil. Éramos pobres. Comer, beber e vestir não eram verbos abundantes na minha realidade. O que as pessoas aprendem sobre a vida nas ruas, por meio de livros ou jornais, talvez não revele a brutal realidade do que essas pessoas passam tentando sobreviver em condições adversas”, contou.

E ressaltou: “Essa minha conquista, de concluir um doutorado, de chegar onde estou, serve para dizer não só ao pequeno Cicero, mas a milhares crianças e jovens: não desistam!”

Diante de tantas desigualdades sociais e falta de acesso a direitos básicos, o trabalho do servidor não romantiza as dificuldades advindas da vulnerabilidade social, mas busca reafirmar a importância de um apoio institucionalizado para que as pessoas em situação de rua e, de modo especial, as crianças, possam ter oportunidade e meios de construir uma vida melhor.

Cícero afirma que não saiu ileso da pesquisa e ressalta que o estudo o fez entender o “seu lugar no mundo”, ampliando o seu senso de justiça em relação aos bens que, necessariamente, devem ser de acesso coletivo para a humanidade. “Depois de uma pesquisa como esta que eu fiz, eu saio mais humano, mais compreensivo sobre as minhas tomadas de decisões, sobre o que realmente importa na vida. Quando eu digo que o doutorado me deu mais ferramentas para compreender e questionar a realidade, isso tem a ver com o meu pensamento de coletividade, de que tudo deve ser para todos e, se isso não acontece, alguma coisa está errada. Acho que, hoje, eu consigo perceber quem sou eu e qual é o meu lugar. Seja no trabalho, no meio familiar, nas rodas de amigos, o ‘eu’ precisa estar aberto à coletividade”, concluiu.

Mais sobre o trabalho

A tese de doutorado de Cícero tem como título “Do ‘sem ter’ à Fundação de Amparo ao Menor – Fundanor: educação e formação nas memórias de infância e juventude de adultos outrora institucionalizados (1975-2015)”, com orientação da professora Margarida Felgueiras e coorientação da docente Elisabete Ferreira, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, em Portugal.

O mestrado foi realizado na mesma instituição. Na ocasião, o servidor pesquisou sobre uma Organização Não Governamental (ONG) Canadense que atuava na Fundanor e em outros contextos brasileiros. Em sua trajetória de estudo, Cícero reconhece o papel da Ufal ao incentivar o quadro de servidores a buscar qualificação profissional. “Faço esse agradecimento à Ufal, pois apoiar e incentivar os servidores da instituição a fazerem uma pós-graduação é uma forma de crescimento coletivo. Sem a Ufal, penso que essas histórias não seriam compartilhadas”, destacou.

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