O Acordo Ortográfico e suas implicações na vida diária


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Não se pode dizer que, antes da promulgação do Acordo Ortográfico que vige nos países da comunidade de língua portuguesa (CPLP) desde o raiar de 2009, não houvesse comunicação eficiente, por escrito, entre as nações envolvidas em negociações comerciais, diplomáticas ou de outra ordem. Nunca ouvimos falar que tivessem deixado de se entender, como se fossem gregos e baianos. Porque a reforma ortográfica, o chamado Acordo, não atinge o léxico e os sentidos empregados em textos. Em Portugal, por exemplo, com reforma ou sem reforma, continua-se chamando o “café-da-manhã” de “pequeno-almoço” e o café-pequeno, que se toma em bares e restaurantes, de “bica”, o que talvez atrapalhe um pouco o brasileiro, em visita àquele país, na hora de se comunicar efetivamente com os lusitanos. Não será um acento, um trema a menos que irão impedir que diplomatas e governantes de países se entendam por escrito. Por esse prisma, o acordo foi e é irrelevante.

Pode até, daqui para diante, causar danos à pronúncia de palavras. Digamos que alguém desconheça a palavra “anguiforme” (antes da reforma, escrevia-se com trema, “angüiforme”). Sem o sinal diacrítico pode-se, com certa hesitação, pronunciar ou não o fonema “u” entre os fonemas “g” e “i”. Por quê? Porque, sem o trema, o falante, em fase de aprendizagem da língua portuguesa, deparando com essa palavra em um soneto de Francisca Júlia (“o fantasma angüiforme de Dante”), talvez pronuncie mal a palavra. Os sinais diacríticos, como o trema, a cedilha e o til, são indicativos de como se deve fazer a pronúncia correta, uma espécie de guia fonético. Até que os ouvidos se acostumem, deverá haver muita confusão por falta do sinal.

Mas tudo isso é contornável por meio de uma boa educação formal da língua. O que quero dizer é que o Acordo não unifica os países que falam português, e jamais acordo algum os unificará, porque a língua é mais do que ortografia. E, mesmo assim, Portugal continuará dizendo “polémica”, com a vogal aberta e com acento agudo na hora de escrever, e nós, brasileiros, ao contrário, “polêmica”. Que unificação é essa? Portugal continuará dizendo “metro” e “judo”, e nós, aqui, do outro lado do Atlântico, ”metrô” e “judô”. Ora essa, pois!

O que eu vejo nisso tudo é muito dinheiro a ser consumido. Bom para alguns! Nós, consumidores de dicionários, teremos de comprar outros, para nos ajustar à nova realidade da escrita, enquanto as editoras deverão ganhar muito dinheiro com a publicação de novos dicionários e manuais que instruem o cidadão comum a se servir das novas regras. Na vida prática, as mudanças ortográficas não interferirão muito na vida do cidadão comum. Já não se sabia muito pronunciar certas palavras: em algumas camadas da sociedade se pronunciava e se pronuncia “tranquilo” (ki), ignorando-se o trema e a presença do ditongo, transformado, por essa pronúncia irregular, em dígrafo, que existe de fato em “quilo” e em “guitarra”, palavras em que a vogal “u”, de fato, não é pronunciada. E olhem que “tranquilo”, agora sem o trema, é uma palavra muito dita, muito usada, seja qual for a classe social. O que diremos, então, de “anguiforme”, palavra mais rara, talvez só encontrável em contextos poéticos clássicos?

O problema maior é o uso do hífen. Em muitos casos não há uma explicação razoável para sua presença ou sua ausência na palavra. Escrevia-se, antes do Acordo, “microondas”. E, agora, “micro-ondas”, só porque o falso prefixo “micro” termina pela vogal “o”, a mesma que inicia o segundo elemento da composição, “ondas”. Parece puro maquiavelismo. Qual a importância disso, segundo a etimologia, a fonética, a morfologia? Qual a razão para, em um dia, não ter a palavra hífen e, em outro, passar a ter? Trata-se de simplificação, como alegam os defensores da reforma? Não, porque até se acrescentou algo à palavra, o hífen que, nesse caso, não existia. E, depois, já a tínhamos internalizado, fotografado na retina a imagem gráfica dessa palavra, fazendo-nos reconhecê-la em qualquer canto, como somos capazes de reconhecer alguém conhecido no meio de uma multidão de rostos desconhecidos.

Portugal reclama que o Brasil se saiu melhor nessa reforma, porque eles, os portugueses, segundo julgam, foram os mais atingidos, com maior número de palavras afetadas do que, mesmo, ocorreu no português brasileiro. No entanto, Portugal já não colocava, há décadas, o acento circunflexo em “voo” ou em “deem” nem o acento agudo nos ditongos abertos existentes em “joia” ou “ideia”, e também já não usavam o trema em “frequente”, por exemplo. Nós é que passamos a não usar mais o circunflexo nesses hiatos com vogal repetida ou o acento agudo em tais ditongos e eliminamos, agora, o trema; e, para isso, temos, sim, de nos adaptar, já que é lei. Mas que eles lá eliminem as consoantes mudas, como as de “adopção” ou “acto” (passando a “adoção” e “ato”), já era mais do que esperado. Aí, sim, houve uma boa simplificação. Lá, para eles!

Uma vez que a situação é irreversível — só não quero aqui repetir a famosa frase de Marta Suplicy sobre as esperas infernais em aeroportos, pelo que ela tem de inútil e vulgar —, aconselho a todos uma boa adaptação. As escolas e as editoras, a imprensa e os documentos oficiais já saíram na frente. Resta-nos acompanhar. O curso de Letras já está fazendo o seu papel, discutindo isso em sala de aula e em seminários, aliás, desde o ano passado. Vamos, pois, em frente!

 

Roberto Sarmento Lima

Professor do curso de Letras da Ufal