Exposição na Pinacoteca: Anotações sobre a Pintura


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Alice Vinagre, artista plástica, expõe na Pinacoteca da Ufal
Alice Vinagre, artista plástica, expõe na Pinacoteca da Ufal

A exposição “Anotações sobre a Pintura”, da artista plástica Alice Vinagre estão em exposição, na Pinacoteca da Ufal, até o dia 30 de outubro, e podem ser visitados no horário de funcionamento: de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 12h30 e das 14h às 18h. A curadoria da mostra é de Marcelo Silveira.

Leia o texto de Maria do Carmo Nino sobre a Exposição

Aspectos Poéticos de um Processo

"O infinito está contido no menor fragmento do mundo." Nietzsche

Primeiramente, temos um tipo particular de escrita. Na superfície da exuberante pintura de Alice Vinagre, observa-se a convivência harmoniosa de traços que não são exclusivamente icônicos nem gráficos e, mesmo não possuindo uma identidade, são signos gráficos, linhas e pontos que podemos considerar como significativos de uma escrita própria. Escrita que, no entanto, não possui um alfabeto, não é decodificada ou, como diria Roland Barthes, não possui mensagem.

Mas, ao mesmo tempo, é também uma pintura que tem o seu início onde se perde o fio da linha, perfazendo um ritmo cujas caligrafias apresentam variações cromáticas justapostas lado a lado ou formando palimpsestos cujas superposições criam tensões, indo do vivo contraste ao tom sobre tom, camadas que, no entanto, jamais se misturam, sem dégradé, transições ou fusões.

Essa relação ambígua entre figura e fundo, abstração e figuração, desenho e pintura, obra e suporte, transforma o trabalho desta artista em um campo pouco afeito às certezas ou afirmações peremptórias. Tudo se passa como se Alice preferisse evocar a alternância de passagens à meia voz entre esses estados, em que nenhum deles quer ceder lugar em detrimento do seu oposto e, antes de desejarem apagar-se ou recuarem diante do outro, afirmam, ao contrário, sua necessidade da pluralidade, da existência simultânea de dimensões que pertencem a tempos e espaços múltiplos.

Se considerarmos — como atesta Umberto Eco — que a harmonia e a ordem constituem a lei do Pai, lei de uma sociedade patriarcal cuja estética reflete os traços de uma sociedade fundada sob a ordem hierárquica, sobre a noção absoluta de autoridade, sobre a presunção de uma verdade imutável e unívoca, cuja organização social refletia a necessidade que guiou as exigências psicológicas e formais da arte, estamos diante de uma produção que, sendo contemporânea, está em sintonia com a estética vigente que desloca, fragmenta, desarticula, desorienta, torna inoperante a ideia de início ou de fim, deixa em aberto a ideia de transformação, aludindo a um processo vivo e contínuo de gestação.

Se a nossa compreensão de ser humano hoje é a de alguém inacabado e aproximativo, um ser em constante formação, em quem se opera, com o passar do tempo, a sensação de um inacabamento cada vez mais visível, o trabalho de Alice toma o partido de adotar essa incompletude ao apresentar obras que testemunham em termos autorreferentes essa dimensão.

Trata-se de uma artista que acredita no poder da evocação e na explicitação do próprio processo criativo. Barroca em sua natureza, esta obra nos apresenta curvas, bifurcações, linhas interrompidas, dilatações, sentidos e inclinações diversos, em que a visão estrutural de eixos e simetrias é negada, revelando sempre aspectos renovados e perturbando as regras da conformidade.

A configuração cambiante dos módulos em cada espaço expositivo atesta a vontade da artista de apregoar a indeterminação e a perturbação de uma ordem determinada, e essa dança de fragmentos, esses desdobramentos incessantes de blocos rítmicos fazem vacilar a tirania da totalidade e da unicidade. O inacabado é passagem, transição, transfiguração, mutação. Ele torna a noção de produto final uma quimera. Traz consigo sempre a ideia (feminina) de vacuidade, de fenda. Em vez de uma busca da totalidade, afirma-se a multiplicação especular de soluções sobre uma determinada realidade. 

Nas inumeráveis séries ao longo de sua trajetória, afirma-se a predileção por essa forma tão presente ao longo de toda a arte do século XX, através de um nivelamento de formas diferenciadas por meio de variações quase musicais, em detrimento da unidade de uma significação superior, via repetição que instaura — como o queria Deleuze — a diferença. A repetição nelas é o conjunto informal, de-composto, de todas as diferenças presentes e sempre possíveis. A reunião dos componentes fragmentares em um mesmo espaço desfocaliza a atenção do espectador: cada parte é descentralizada e remetida à interpelação com as outras partes.

Todas essas características conferem ao trabalho desta artista um elo com o labirinto e toda uma tradição de sua relação com as artes plásticas (ou ainda outros tipos de arte, como a literatura e o cinema) contemporâneas, o que tem sido explorado pelos artistas de muitas maneiras, indo da sua utilização como metáfora, como símbolo ou como complexo mitológico e psicológico.

Entre as várias possibilidades de sua formulação plástica, Alice propõe o encadeamento, o percurso, o dinamismo interrompido que recomeça sem cessar, de maneira aleatória, a errância, o aberto e o fechado, o interior em relação a um exterior que é rejeitado, obsessivo, talvez incompreensível em sua totalidade, a proximidade dentro de uma relação de contiguidade e distanciamento através de contrastes, a dialética inclusão-exclusão, o processo de elaboração sucessivo, ou seja, a própria ação do devir, a complexidade e a desordem, tão representativas do imaginário contemporâneo.

Assista à matéria sobre a exposição