A vida de quem saiu de casa para crescer

Jovens e com um mundo inteiro para conhecer, universitários lidam com a necessidade de se adaptar às mudanças


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Gabriela Lapa - estagiária*

"Antes eu saía com os meus amigos, mas aqui não conheço ninguém. Tenho que aprender a cozinhar a arrumar a casa - é tudo muito diferente", conta Valdecy Cardoso, de 18 anos. Há três meses, ele deixou Cabo Verde, na África, para cursar Administração na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em Maceió, mesmo sem conhecer a cidade.

Como Valdecy, muita gente que precisa sair de casa para estudar enfrenta os desafios da adaptação e da responsabilidade que vem com o novo endereço. Todo ano, a Ufal recebe, alunos oriundos dos mais variados lugares que, morando em repúblicas ou apartamentos, aprendem a cuidar da própria vida e a lidar com a rotina de outras pessoas no mesmo espaço. Experiência trabalhosa, mas fundamental.

"A melhor parte de morar fora de casa é conquistar a independência", define Valdecy. Ele divide um apartamento no bairro do Farol com mais três colegas cabo-verdianos, e mesmo estando em Maceió há pouco tempo, sente a diferença dos dias vividos em casa com a família. "Aqui precisamos fazer a limpeza e cozinhar. Em Cabo Verde quem fazia isso era minha mãe", conta o estudante, que fala com os pais todos os dias pelo telefone.

Ele veio cursar Administração através do programa de intercâmbio que o governo africano mantém com universidades brasileiras, selecionando os melhores alunos concluintes do ensino médio. Sair de casa lá, é quase uma tradição. "As universidades brasileiras oferecem mais estrutura. A maioria dos estudantes deixa Cabo Verde quando termina a escola e só volta depois de formado", diz Valdecy. Junto com ele, outros 20 cabo-verdianos foram escolhidos recentemente para participar do intercâmbio, mas como há várias universidades parceiras do programa,  nem todos ficaram na mesma cidade.

Valdecy, que queria estudar em Fortaleza, acabou se matriculando em Maceió e veio sem conhecer nada nem ninguém. "Eu só tinha amigos em Recife. Eles me indicaram algumas meninas que moravam aqui e fiquei com elas por um tempo, até conhecer os rapazes do apartamento", lembra o estudante.

Na universidade, ele não encontrou grandes dificuldades e o convívio com outros intercambistas de Cabo Verde facilitou a adaptação. "A única coisa mais complicada são as piadinhas. Tem gente que pergunta se lá em Cabo Verde a gente dorme em árvores. Outro aluno perguntou porquê minha orelha é meio dobrada e eu disse que me machuquei brincando com um leãozinho: a parte mais incrível é que ele acreditou", conta Valdecy, achando graça da reação.

Paixão por origem une estudantes

Pendurada na sala, uma enorme bandeira de Cabo Verde indica que, além da nacionalidade, os moradores compartilham a mesma saudade de casa. Anatólio Dias  que como Valdecy está há três meses na cidade, acredita que o fato de virem do mesmo lugar facilitou a adaptação. "Ter os mesmos costumes nos deixa mais próximos. Encontramos outros cabo-verdianos na Ufal, fizemos amigos, então às vezes nos reunimos e vamos a alguma festa", conta ele.

Mas para Valdecy, essa convivência ainda é muito diferente de tudo com que ele estava acostumado. "Em Cabo Verde eu conhecia as pessoas, podia ir a qualquer lugar. Aqui, olho na rua e não reconheço ninguém. O jeito é ficar em casa", diz. "De tudo o que vem com a vida nova, a saudade é a pior parte", desabafou.

No dia-a-dia, as adaptações também incluem o serviço doméstico. Os rapazes não têm empregada e precisam se dividir para limpar o apartamento e pôr comida na mesa. Valdecy garante que o serviço fica bem feito, e conta que já aprendeu a cozinhar algumas coisas, mas só come bem quando os dois colegas que estão há mais tempo em Maceió podem estacionar a barriga no fogão. "Durante a semana ficamos boa parte do dia na Ufal, então cada um compra sua comida, geralmente na padaria. Mas no fim de semana, cozinhamos juntos. Aí dá para passar bem", brinca. O  convênio  com  a Ufal termina com a graduação. Anatólio, que estuda engenharia ambiental, ainda não sabe o que fará quando se formar, mas Valdecy pensa em continuar no Brasil para fazer mestrado, e só então voltar para o seu país. "Em Cabo Verde é mais fácil conseguir emprego se você tiver o título", explica. (G.L.)

Desafios precisam ser superados a cada dia

Serviços domésticos e culturas diferentes não são os únicos desafios enfrentados por quem sai de casa para estudar. Também não é preciso vir de outro país, como os rapazes de Cabo Verde, para se sentir perdido em um ambiente novo. "Eu vim para Maceió no dia do resultado do vestibular mesmo sem saber que tinha passado. Não tinha onde ficar, mas estava decidida a bater de porta em porta até encontrar", lembra Joyce Epifânia que saiu de Maribondo há três anos para estudar dança na Ufal. Depois da festa dos aprovados, ela conta que precisou de um lugar para tomar banho e, com a ajuda de uma amiga, descobriu a Residência Universitária Alagoana (RUA), onde está até hoje. "Daqui só saio quando casar", diz.

Na RUA vivem cerca de 100 estudantes. Para entrar, é preciso ser avaliado pela assistente social da Universidade e provar que o candidato não tem condições dê viver em outro lugar. Joyce lembra que, quando fez a avaliação, esperou um mês para ter direito de morar na residência. "Até surgir uma vaga nos quartos, eu fiquei no alojamento, que é um vão com várias camas. Nessa época, era a única mulher e tive que dividir o espaço com 11 homens", conta a estudante, "Mas não tive problemas. Era um grupo ótimo e que me respeitava", recorda-se.

Se acostumar com a nova rotina no alojamento foi apenas o começo da trajetória de Joyce como universitária. Até conseguir uma bolsa na Ufal, ela contava apenas com R$ 30 enviados por mês pela família. "Tem gente que chega sem dinheiro nenhum. Eu só tinha esses 30 reais e fiquei muito tempo esperando por uma resposta da Pró-Reitoria de Extensão, sobre a bolsa", lembra.

Os recursos que a Residência oferecia, na época em que ela chegou, também não eram os melhores. "Os residentes tinham que pagar pelas refeições e a comida era péssima. Tinha uma coisa chamada "mexidinho do Adelmo" que era óleo puro. Para escapar, fiz um acordo com os meninos do alojamento: eles lavavam os pratos e eu fazia macarrão com salsicha", conta Joyce.

Hoje, quem mora na RUA reconhece que muita coisa mudou. Ninguém mais precisa pagar pelas refeições, que melhoraram na qualidade, e os hóspedes, como são chamados os moradores do alojamento têm os mesmos direitos à alimentação que o restante da casa. Há uma equipe responsável pela limpeza diária e oito vigilantes para cuidar da segurança nas duas portas de entrada.

SAUDADE - Para matar a saudades da família, boa parte dos residentes aproveita as festas e os feriados para viajar. Quem não pode, em função do trabalho ou da faculdade se contenta com o telefone "Tem gente que chora quando liga", conta Edson do Santos, estudante de dança. Joyce também ficou bastante tempo longe dos pais, mas no últimos meses, conseguiu em prego em uma escola de Maribondo e passou a ir mais vezes para casa.

Tanto ele como ela estudam pela manhã no Espaço Cultural, ao lado da Residência. No restante do horário, durante a semana, participam de projetos e dão aulas de dança em academias. (G.L.)

Problemas são resolvidos por comissão

Ao contrário de Joyce, que divide o quarto com mais duas estudantes, Edson ainda espera por uma vaga para sair do alojamento. Ele está há um ano com 15 outros estudantes no térreo da residência.

Tanta gente vivendo em um só lugar parece sinônimo de confusão, mas para resolver os problemas diários, uma comissão de quatro residentes faz a ponte de comunicação entre a RUA e a Universidade. Edson vive na casa há apenas um ano, mas já faz parte do grupo de representantes. "É difícil alguém se habilitar a fazer parte da comissão, geralmente quando isso acontece, todo mundo concorda. Se algo está errado na casa, fazemos uma assembléia e falamos com a UFAL", conta ele. Foi assim que a RUA passou a oferecer mais vagas no alojamento e os residentes deixaram de pagar pelas refeições.

Mas nem tudo é alegria. Um dos problemas mais comuns, segundo Edson, é a falta de água para beber. A comissão já se reuniu com representantes da Ufal para reivindicar a troca  do fornecedor, que atrasa a entrega dos botijões, mas até agora nada aconteceu. Os residentes também não possuem lugar específico para estender as roupas; os varais ficam pelos corredores. Na lavanderia, um cano entupido impede que mais de uma pia seja usada ao mesmo tempo.

Entre os residentes, as divergências são muitas, mas para Joyce, que em três anos já dividiu o quarto com uma infinidade de colegas, o segredo é ter jogo de cintura. "Tem muita gente com outros costumes, outra educação. Um quer dormir tarde, o outro reclama da luz acesa. É preciso saber levar na esportiva", aconselha a estudante.

Os residentes só podem ficar na casa até três meses depois de graduados.

Assim como quando chegaram à RUA, muitos não têm respostas para o que farão no futuro, mesmo os que hoje já trabalham. "Você nunca sabe o que pode acontecer na vida. Prefiro não fazer planos", explica Joyce. E comemora: "Até agora deu certo". (G.L.)

*Publicado em O Jornal de domingo, 2 de maio de 2010

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