Pesquisadores levantam dados históricos em cartórios de Alagoas

Livros de batismos, casamentos e óbitos apontam costumes escravocratas do século 19


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Filipe Caetano fazendo a coleta de imagens em cartório de Atalaia
Filipe Caetano fazendo a coleta de imagens em cartório de Atalaia

Jhonathan Pino - jornalista 

A caligrafia dificulta a leitura, o vocabulário já é distante dos nossos dias e os livros mal seguram as folhas esquecidas pelas traças. Apesar de todas essas dificuldades, há seis meses o professor Filipe Caetano, do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes (Ichca) vem passando por cartórios de vários municípios alagoanos para a coleta e digitalização de informações que propiciem uma releitura dos hábitos e costumes da população no século 19. O trabalho, que começou na Cúria Arquidiocesana de Maceió, agora continua pelas cidades mais importantes economicamente da antiga Comarca de Alagoas. 

À primeira vista os dados podem parecer de pouca importância, como a ação de divórcio movida por Dona Joaquina Adélia Costa Tenório contra seu marido "sem dolo, nem malícia e de espontânea vontade", na cidade de Atalaia, em 1886; ou o Livro de Receita da Compra da Escrava Joana, cor parda, em 1879-1880, mas quando somadas, essas informações apontam manifestações ainda não esclarecidas pela história do país, como a preferência das mães por padrinhos de cor branca, para os seus filhos, ou o grande percentual de mães declaradas solteiras em registros de batismos. 

Atualmente três alunos do curso de História participam do Projeto de Bolsa de Desenvolvimento Acadêmico Institucional (BDAI), denominado População e Relações de Poder na Documentação Histórica do Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió, séculos 19 e 20, estão se dividindo entre o tratamento, preservação, conservação, listagem, catalogação e identificação de fundos e coleções na Cúria Arquidiocesana de Maceió, mas muitos deles também acompanham o professor Filipe Caetano em outros municípios alagoanos. 

Na Cúria, as análises preliminares já estão sendo feitas, visto que se optou em trabalhar com o registro de batismos dos municípios de Porto Calvo, Marechal Deodoro e União de Palmares. Nela, para a primeira metade do século 19, já conseguimos configurar mais ou menos o índice da população escrava que eram batizadas nestas localidades. No que tange aos cartórios, apenas estamos na etapa de fotografar a documentação existente”, disse o docente. 

O professor revela que entre os motivos da escolha destas duas cidades está o fato de Porto Calvo e Marechal Deodoro (antiga Vila de Santa Maria Magdalena Alagoas do Sul) serem duas das principais vilas da antiga Comarca da Alagoas/Capitania de Pernambuco, situadas em importantes regiões produtoras de açúcar e consequentemente de escravos. No caso de União dos Palmares, o interesse se deu pela ocorrência do mais importante quilombo da história do Brasil. 

Autorização judicial permite andamento das pesquisas 

Apesar de harmoniosa a relação dos cartórios com os pesquisadores, Filipe teve que recorrer à justiça para garantir o acesso àqueles documentos. “Como foi feita uma solicitação de autorização de pesquisa ao Desembargador/Corregedor de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, demonstrando as intenções do projeto, a recepção, tanto dos funcionários e proprietários de cartórios, tem sido bem positiva. Muitos deles já esperavam nossa visita por conta do encaminhamento da documentação pela Corregedoria, mas no desenvolvimento do trabalho percebemos um certo estranhamento dos mesmos com a quantidade de trabalho e interesse com a documentação”. 

Foram solicitadas autorizações de acesso aos cartórios de quatro cidades, são elas Porto Calvo, Passo de Camaragibe, Porto de Pedras e Atalaia. “Até o presente já visitamos dois em Passo de Camaragibe, dois em Porto Calvo, dois em Porto de Pedras e três em Atalaia. Nove cartórios ao todo, ainda restando dois”, detalha o docente. 

Essa é uma das primeiras pesquisas realizadas com a intenção de levantamento da população e escravidão em Alagoas, antes disso, Danilo Marques se debruçou nas mulheres alforriadas de Maceió no século 19 para fazer sua dissertação, “Sobreviver e Resistir”, e o professor Osvaldo Maciel reuniu uma série de artigos investigativos sobre a questão escravista em Maceió e Limoeiro de Anadia. Esta coletânea foi chamada “Pesquisando (n)a Província”. 

Como a atividade acadêmica não é tão habitual nos cartórios, o professor relata que parte dos funcionários acreditam que os livros ali mantidos há tanto tempo não passam de papeis velhos e sem importância atual, que apenas ocupam espaço nos locais. Mas a má conservação deles não se dá apenas pela falta de interesse humano. 

Existe uma discrepância muito grande no tratamento da documentação nos cartórios pesquisados. Em Porto Calvo, a documentação está extremamente organizada e bem conservada; em Passo de Camaragibe, percebemos que o cuidado não foi tão grande assim; situação diferenciada em Porto de Pedras (que também abrigou parte do acervo dos cartórios do Município de São Miguel dos Milagres), cujo acervos também estão em bom estado; já Atalaia a dificuldade foi maior visto a cidade ter sofrido uma grande enchente em anos passados, assolando grande parte da documentação do Cartório do 1º Ofício, que se encontra em estado delicado”, enumera Filipe. 

Nos locais são analisados os testamentos, inventários, processos crimes e escrituras de compra e venda/alforria de escravos, que são raramente encontrados em outros acervos documentais do Estado, como o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) e o Arquivo Público de Alagoas (APA). É a partir desses dados que estão sendo mapeados o cotidiano social e econômico das localidades. 

O material recolhido está sendo arquivado na sala do Grupo de Estudos América Colonial (GEAC), coordenada pelo docente, na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). O pesquisador salienta que toda a documentação referente ao século 19 está sendo fotografada, independente do interesse imediato da pesquisa. “Isto porque não sabemos se a documentação perdurará por mais tempo onde estão alocadas e se conseguiremos voltar em outra oportunidade para uma pesquisa”, frisa. 

O pesquisador também destaca que grande parte desse trabalho está sendo realizada de forma voluntária, os ganhos estão na possibilidade de promover um aprendizado prático da pesquisa dos estudantes envolvidos. “Muitos destes alunos têm me acompanhado nas andanças pelos cartórios, aos quais, aqui, agradeço imensamente, pois seria impossível a concretização da tarefa sem eles. Todavia, como era um antigo desejo meu a realização deste levantamento no acervo cartorial e tendo plena consciência que é uma documentação completamente inédita e que, com certeza, pode revelar uma outra realidade histórica para o passado alagoano, mesmo sem financiamento, tem sido bastante enriquecedor intelectualmente”, acredita o docente, que disponibiliza parte de suas primeiras impressões no seu perfil pessoal do Facebook.