Crianças têm hábitos alimentares inadequados na primeira infância
Realizada pelo Laboratório de Nutrição em Saúde Pública da Fanut, pesquisa inédita em Alagoas revelou que público infantil consome precocemente alimentos ultraprocessados
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Thâmara Gonzaga - jornalista
A Organização Mundial da Saúde e o Ministério da Saúde do Brasil recomendam que até os seis meses de idade as crianças sejam alimentadas apenas com o leite materno. Após esse período, deve-se iniciar de forma gradativa a introdução de água e alimentos complementares (cereais, tubérculos, carnes, leguminosas, frutas e legumes); evitando açúcar, enlatados, frituras, refrigerantes, salgadinhos e todos os outros alimentos ultraprocessados até o segundo ano de vida. Tais recomendações não são por acaso e buscam aumentar as chances de um futuro saudável para os pequenos, tendo em vista que são nos primeiros mil dias de vida, período chamado de primeira infância, que se tem a formação do hábito alimentar. Mas não é bem isso que vem ocorrendo em muitos lares de Maceió.
Um trabalho inédito no Estado realizado por professoras e pesquisadoras do Laboratório de Nutrição em Saúde Pública da Universidade Federal de Alagoas revelou que os bebês estão sendo submetidos a hábitos alimentares inadequados no contexto domiciliar. “O que mais chamou atenção nos resultados foi o consumo de alimentos ultraprocessados no primeiro ano de vida, antes mesmo dos seis meses, como açúcar, salgadinhos, biscoito recheado, bala, pirulito, chocolate, entre outros”, alertou a doutora em Ciências Aplicadas à Pediatria e coordenadora da pesquisa, Giovana Longo-Silva.
Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de Alagoas (Fapeal), o estudo, intitulado 1º Diagnóstico da Situação Nutricional em uma amostra de creches e pré-escolas de Maceió (Sinucri), avaliou todas as crianças menores de cinco anos matriculadas nos centros municipais de educação infantil localizados no 7º Distrito Sanitário de Maceió, que compreende os bairros próximos ao Campus A. C. Simões, perfazendo um total de 359 crianças.
Em 2014, a equipe integrada pelas pesquisadoras e professoras da Faculdade de Nutrição (Fanut) da Ufal, Giovana Longo-Silva, Risia Menezes, Maria Alice Oliveira, Leiko Asakura, Ana Paula Clemente, quatro mestrandas e sete graduandas, realizou um diagnóstico desses centros, investigando aspectos relacionados a dados alimentares e nutricionais. Segundo a coordenadora da pesquisa, não há registros de pesquisas anteriores conduzidas em creches da capital alagoana.
Diretores, educadores, cozinheiros e mães responderam a questionários sobre alimentação, nutrição e saúde. O estado nutricional (medição de peso e estatura) e a dosagem de hemoglobina (exame que verifica se tem anemia) de todas as crianças também foram avaliados.
As mães ainda foram questionadas sobre a oferta e a duração do aleitamento materno, bem como a idade em que seus filhos haviam consumido uma série de alimentos pela primeira vez. E foi a partir dessas respostas que se chegou a dados alarmantes sobre os hábitos alimentares nos primeiros anos de vida.
Alimentação inadequada no contexto domiciliar
Entre os dados mais relevantes encontrados sobre o estado nutricional das crianças é de que a desnutrição já não é mais o problema de saúde pública prevalente nessa população, mas o sobrepeso e a obesidade. De acordo com a pesquisa, 7,6% delas estavam acima do peso, enquanto 3,9% apresentavam desnutrição. Outro levantamento importante foi o percentual altíssimo de anêmicos na faixa etária de zero a cinco anos: dos avaliados, 44,2% tinham anemia ferropriva.
Em relação à prática alimentar no contexto residencial, o Sinucri revelou dados preocupantes. Segundo o levantamento feito, até um ano de idade, 58,3% já tinham consumido bala, pirulito ou chocolate; 62%, biscoito recheado; e 38%, embutidos diversos (salsicha ou linguiça). “Alimentos ricos em sódio, açúcar e gorduras trans e saturada, ou seja, com uma composição totalmente inadequada, que não deveriam fazer parte da dieta de um ser em formação e que as mães inseriram precocemente”, ressaltou Longo-Silva.
E os dados alarmantes não são apenas esses. Ainda conforme o estudo, com um ano de vida, 42,3% tinham tomado refrigerantes e 39,5%, suco artificial; 56,9% comeram salgadinhos de pacote; e 78,7%, petit suisse (um tipo de bebida láctea adocicada).
“Esses alimentos não são ofertados na creche, pois as unidades de educação infantil seguem um cardápio considerando as necessidades da faixa etária, conforme as orientações do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Eles estão sendo ofertados no ambiente familiar, conforme foi constatado nos questionários respondidos pelos próprios pais”, revelou a coordenadora.
O consumo precoce e continuado desses alimentos, advertiu Longo-Silva, leva ao incremento de doenças crônicas não transmissíveis, a exemplo de diabetes, hipertensão, colesterol alto, dislipidemia, síndrome metabólica, câncer, entre tantas outras. “Há o aumento de mais de 50% na incidência dessas doenças na população infantil. Males que antes só acometiam os adultos, hoje ocorrem em crianças na primeira infância por causa dessa alimentação tão ruim como foi revelada pelo Sinucri”.
Entre as possíveis causas para essas refeições inadequadas, a doutora em Nutrição, Risia Menezes, esclarece que pode ser elencada uma série de fatores, como a situação socioeconômica e a falta de informação para se alimentar melhor. Segundo a pesquisa, 98,3% das famílias entrevistadas vivem com menos de um salário-mínimo per capta e 75,6% recebem o auxílio do programa Bolsa Família. O nível de escolaridade também é baixo: de acordo com o estudo, 49,7% das mães e 58,5% dos pais não concluíram nem o ensino fundamental.
Outro aspecto apontado pelas pesquisadoras é o apelo da publicidade. “As propagandas influenciam o consumo de alimentos não saudáveis, principalmente entre o público infantil, por meio da associação a personagens, embalagens atrativas, que induzem os pais a confiarem na indústria e na propaganda, acreditando que aquele alimento foi especialmente feito para criança. O que, definitivamente, não é uma verdade”, disse a professora Giovana.
A tabela do anexo traz um resumo da lista de alimentos apresentada aos pais a fim de investigar os hábitos das crianças no contexto domiciliar. O objetivo era saber com que idade elas tinham consumido pela primeira vez.
Diagnóstico para os gestores
Assim que finalizou a análise das primeiras amostras, a equipe de nutricionistas promoveu um evento de extensão no qual apresentou os resultados aos secretários municipais, coordenadores do Programa Saúde na Escola e Programa de Alimentação Escolar, além dos profissionais da educação do 7º Distrito Sanitário de Maceió, para que eles fossem os primeiros a tomarem conhecimento da realidade evidenciada pelo estudo.
“Durante a apresentação, os próprios gestores levantaram algumas possibilidades de como poderiam atuar para solucionar os problemas. Fizemos um diagnóstico e, a partir de agora, eles têm uma referência para direcionar suas ações, identificando questões precocemente para implantar políticas públicas para essa população”, destacou Longo-Silva.
Além de divulgar os dados, a ação também buscou ressaltar a importância dos educadores na tarefa de promover hábitos alimentares saudáveis. “A escola, como janela de oportunidades, pode e deve trabalhar o assunto como tema transversal quando se ensina as outras disciplinas. Isso está previsto em dispositivos legais da educação”, defendeu Risia Menezes.
A doutora em Nutrição salientou a urgência de se avançar nessa questão, diante dos dados que indicam que mais de um terço das crianças e mais da metade da população adulta do Brasil estão com excesso de peso. “Quando já está adulto, com a doença instalada, é mais difícil reverter o hábito alimentar que cultivou a vida inteira. Para diminuir os casos de doenças crônicas é preciso começar na infância”.
A docente da Fanut, Leiko Asakura, iniciou uma estratégia de educação alimentar e nutricional através do projeto de extensão que estimula a implantação e o cultivo de hortas nas unidades de ensino participantes da pesquisa. Algumas creches já estão sendo beneficiadas. O objetivo é melhorar o acesso ao alimento saudável, conscientizando crianças, pais e educadores sobre a necessidade de se ter refeições com valor nutricional agregado, comendo frutas, legumes e verduras.
Contribuições para ciência
Os primeiros levantamentos do Sinucri já resultaram na elaboração do livro Saúde e Nutrição em Creches e Pré-escolas: um olhar para Maceió, que será lançado em abril deste ano pela Editora da Universidade Federal de Alagoas (Edufal). Exemplares serão entregues aos gestores e a cada uma das unidades de educação infantil.
O estudo também deu origem a quatro dissertações de mestrado em nutrição, dois artigos publicados em revistas nacionais, além de sete projetos de iniciação científica (Pibic) financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Um dos trabalhos de iniciação recebeu o prêmio de Excelência Acadêmica da Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (Propep). Com o título Situação nutricional de crianças em creches públicas: introdução de sucos artificiais e refrigerantes na dieta de lactentes, o projeto, realizado pela estudante Lucinelma Silva e orientado pela professora Risia Menezes, foi considerado como um dos melhores apresentados no 25º Encontro de Iniciação Científica da Ufal.
A investigação científica gerou um amplo banco de dados com muitas informações que ainda serão analisadas e renderão diversas produções acadêmicas. O grupo do Laboratório de Nutrição em Saúde Pública da Ufal tem o interesse, inclusive, de promover uma avaliação comparativa entre os dados obtidos em Maceió com os de São Paulo, uma vez que a coordenadora Giovana Longo-Silva desenvolveu o mesmo trabalho científico em território paulista. Há, ainda, a proposta de investigar os outros distritos sanitários de Maceió que, incluindo o que foi avaliado pelas profissionais da Fanut, totalizam oito territórios.
Orientações para uma alimentação melhor
Para obter informações seguras sobre uma alimentação saudável na primeira infância e na fase adulta, as pesquisadoras indicam duas publicações elaboradas pelo Ministério da Saúde e disponíveis na internet: o Guia alimentar para criança menor de 2 anos e o Guia alimentar para a população brasileira.
Nesses documentos, estão disponíveis orientações alimentares com foco na promoção da saúde e na prevenção de doenças. Encontra-se, ainda, explicação sobre o processamento de alimentos, com as recomendações dos quais devem ser consumidos regularmente (in natura e minimamente processados - precisam ser a base da alimentação), os de uso limitado (processados – admite-se o consumo em pequenas quantidades, como ingredientes de preparações ou parte de refeições com alimentos in natura ou minimamente processados) e aqueles que devem ser evitados (ultraprocessados - fabricados por grandes indústrias e com a composição cheia de sal, açúcar, óleos, gorduras e substâncias de uso exclusivamente industrial).
“São publicações que estão sempre passando por revisões. O Guia alimentar para a população brasileira é elogiado no mundo inteiro. Recentemente, foi citado nos Estados Unidos como bom exemplo de guia”, afirmou Menezes.
Elas também orientam avaliar a composição dos produtos antes de comprar. Excessos de açúcar, corante, sódio, conservante, gorduras trans e saturada, não são recomendados nem aos adultos muito menos para os pequenos. “Alguns corantes e conservantes estão sendo associados a ocorrências de tipos de câncer. Então, é preciso evitar esses alimentos que representam uma série de malefícios que podem comprometer o futuro da criança”, concluiu Longo-Silva.