Ufal e Sociedade entrevista Emerson Nascimento sobre segurança pública

Confira a entrevista gravada para a Radioweb Ufal


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Lenilda Luna entrevista o professor Emerson Nascimento. Foto: Thiago Prado
Lenilda Luna entrevista o professor Emerson Nascimento. Foto: Thiago Prado

O programa Ufal e Sociedade, da Radioweb Ufal, entrevistou o professor Emerson do Nascimento sobre o tema da Segurança Pública.

Lenilda Luna: Estamos iniciando mais um programa Ufal e Sociedade e hoje o nosso tema é a questão da Segurança Pública. Nós convidamos o professor Emerson do Nascimento, que é professor de Ciência Política e coordena o Laboratório de Estudo de Segurança Pública do Instituto de Ciências Sociais. Professor, bem vindo e obrigada por aceitar nosso convite.

Emerson do Nascimento: Obrigado! Eu que agradeço.

Lenilda Luna: Então, professor, esse laboratório que o senhor coordena tem várias linhas de pesquisa, já produziu muitas avaliações. Conta um pouco como é o trabalho do laboratório...

Emerson do Nascimento: Bom, o laboratório é coordenado por mim e pelo professor Júlio Cezar Gaudêncio, que também é do Instituto de Ciências Sociais. Criamos o Laboratório mais ou menos em 2015, quando redefinimos nossas agendas de pesquisa em torno do tema de Segurança Pública, especialmente no contexto da Segurança Pública aqui no estado de Alagoas. Ao longo desse período, temos desenvolvido algumas atividades, sobretudo, de orientação de trabalhos de conclusão de curso e dissertações de mestrado. A partir do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da nossa unidade, desenvolvemos ainda parcerias com alguns órgãos do Estado, como a Secretaria de Prevenção à Violência, por exemplo, onde nos responsabilizamos, junto ao governo do estado e à FAPEAL, pela criação Observatório de Prevenção à Violência da SEPREV, onde, durante alguns anos, coordenamos um conjunto de atividades em torno da produção de diagnósticos, avaliação e delimitação de parâmetros para implantação e execução de algumas políticas públicas de segurança, sobretudo de prevenção, aqui no município.

Lenilda Luna: Isso é fundamental porque não dá para elaborar políticas públicas se toda a avaliação do que acontece de assalto, de assassinato é baseada no senso comum. É preciso ter um entendimento científico de como é essa violência, o porquê ela se dá, qual é a relação dela com os grupos sociais, tudo isso precisa ter uma compreensão mais profunda, num é mesmo?

Emerson do Nascimento: Sim. A segurança é um tema complexo, porque é um tema que atinge diretamente a vida de todas as pessoas. Então, todos têm uma opinião sobre o problema e é legítimo que tenham, pois estamos tratando de um problema que atinge sobremaneira suas vidas. Logo, todo mundo tem uma “explicação” do problema, todo mundo tem um entendimento diferente de qual é a “causa” do problema e, todo mundo “prevê” ou “imagina” formas diferentes de reduzir ou atenuar esse problema. Contudo, embora seja positivo que as pessoas se interessem e discutam o tema, quando o senso comum toma de assalto a agenda da segurança pública, o resultado é sempre trágico. É preciso entender que a área da segurança pública deve e necessita caminhar junto à pesquisa, na realidade, essa dobradinha é imprescindível. Digo até que não tem como fazer política pública sem investimento maciço em pesquisas que não somente compreendam, mas, principalmente, expliquem os mecanismos de causação do fenômeno que queremos minorar ou reduzir, no caso, a violência e suas múltiplas expressões. Fazer política é a arte de utilizar recursos limitados para atender demandas que são sempre ilimitadas, por isso temos que saber exatamente onde investir o recurso, como avaliar e monitorar sua aplicação, bem como, medir seu impacto, se queremos desenvolver uma política pública de fato eficiente. Por isso precisamos de pesquisa. O médico não faz uma incisão cirúrgica sem ter plena clareza de onde, como e sob que forma realizar esta intervenção. Então, se você quer reduzir um determinado tipo de fenômeno, a magnitude de determinado tipo de fenômeno como a violência homicida, por exemplo, o número de homicídios dolosos que a gente tem no Brasil, a gente precisa para isso, estar pautado numa explicação que seja racional, convincente e fundamentada em parâmetros científicos que nos possibilite dizer que é viável investir recurso público no combate daquele tipo de elemento, daquele tipo de mecanismo que é o elemento que seja propulsor para aquele tipo de fenômeno, ou seja, você precisa amparar a política pública em evidências que sejam confiáveis. O Estado não pode pautar seus planos de intervenção a partir do senso comum. É nesse sentido que eu digo que estamos correndo na contramão do que se faz de melhor e mais eficiente no mundo em termos de segurança pública, porque aqui, temos privilegiado a discussão não pela pesquisa ou através de bases empíricas sólidas, mas pelo “achismo”. Enfim, infelizmente no Brasil, a dimensão científica da abordagem da segurança é muito pobre e isso acaba tendo um prejuízo sobretudo para o cidadão porque gera dinheiro público mal aplicado e, não poucas vezes, políticas ineficientes se perdem no meio do caminho e não chegam ao resultado esperado.

Lenilda Luna: Nós já vimos vários exemplos de como isso é nocivo para a sociedade. Políticas fundamentadas assim na opinião pública de forma leviana. O medo é um péssimo conselheiro, então, as pessoas começam a acreditar que é preciso defender pena de morte, matar, bandido bom é bandido morto, que foi um bordão divulgado pelos tele-programas policiais e acabou virando um lema na sociedade. Ou reduzir a maioridade penal, quer dizer, vamos prender as crianças? São consequências de uma política construída baseada no senso comum, sem uma avaliação mais profunda.

Emerson do Nascimento: É, eu diria que sim. Tanto que o contrário disso também, né? Observemos que nesse debate predomina os extremos. A forma como os gestores entendem o problema diz muito da forma como eles desenham políticas para combater aquele problema, então, por exemplo, é muito evidente em algumas políticas públicas de segurança e sobretudo, nas mais recentes, traçadas pelo Governo Federal, por exemplo, que o que está por trás da política é uma crença muito grande de que a única forma possível de combater a criminalidade é através do recrudescimento das penas, através do fortalecimento do poder bélico da polícia e do policiamento ostensivo propriamente dito e da ampliação do encarceramento, ou seja, políticas dessa natureza entendem que o crime seria, na verdade, um produto voluntarioso da ação individual e da escolha individual e que a única forma de combater o crime é de alguma maneira você aumentar os custos desse tipo de ação no sentido de que ela se torne mais custosa do que gratificante para aquele indivíduo que pretende cometer um crime, digamos assim. O que está por trás dessa ideia é a hipótese de que quem comete o crime, o faz por absoluta e espontânea escolha ou tão somente porque as oportunidades são mais propícias. A hipótese despreza a importância dos mecanismos sociais, do peso dos modelos de sociabilidade e convivência e toma o debate a partir da sua perspectiva mais limitada - o populismo penal.. Do outro lado também, você tem um discurso que é igualmente ineficiente, digamos assim, é o daquelas pessoas que atribuem o crime como produto exclusivo de uma estrutura social perversa, digamos assim. É a ideia de que o crime é um produto residual da pobreza, da miséria. E o entendimento é que o Estado na verdade precisa intervir dentro dessa dimensão macrossocial, é preciso alterar índices da educação, transformar essa realidade e aí, acredita-se que essa sociedade vai se pacificar diante dessa possibilidade, dessa conquista de melhorias. Isso também tem esbarrado com pouca veracidade, porque nos últimos tempos, por exemplo, no Norte e Nordeste tivemos um crescimento muito grande da violência, sobretudo, da violência homicida, todavia, há que se destacar que nos últimos 20 anos, nestas regiões, a gente teve uma melhoria significativa dos indicadores sociais. Ou seja, o que estou querendo dizer com isso é que nenhum investimento somente em políticas que digam respeito a restrição, a contenção, ao controle individual, nem políticas somente pautadas na melhoria dos indicadores sociais, vão resolver o problema. É algo aí no meio termo desses dois extremos, que é possível se levar em conta na hora de pensar e elaborar políticas públicas. Confiar no populismo penal (à direita) ou na associação mecânica entre melhorias de indicadores sociais e criminalidade (à esquerda) não tem mostrado mostrado qualquer resultado de eficiência. Ambos os modelos estão esgarçados.

Lenilda Luna: O papel do Estado e a concepção que a gente tem do Estado também influencia? Tem gente defendendo a militarização do Estado como se dentro dessa estrutura militar não existissem também corrupção e violência. O crime também existe dentro das instituições do Estado, num é mesmo?

Emerson do Nascimento: Nós brasileiros, temos uma relação complexa com o Estado. Tomamos o Estado como um inimigo da sociedade civil, sob determinadas circunstâncias, e como único responsável pela transformação e mudança da nossa própria sociedade, em outros momentos. No que compreende o campo da segurança, por exemplo, entendemos que essa é uma responsabilidade única e exclusiva do Estado. Não que o Estado enquanto entidade política complexa não tenha responsabilidades sobre a garantia e a promoção da segurança, mas enquanto sociedade civil, não podemos abdicar do tema. A segurança não é uma pauta exclusiva dos políticos ou das polícias. Precisamos rebater a fraude de algumas hipóteses. Por exemplo, a associação entre pobreza e criminalidade: é uma variável que não encontra na literatura sustentação empírica que dê suporte a isso, pelo contrário, se observarmos os estados que tem o maior nível de pobreza no País, não são necessariamente os estados mais violentos. Se a gente pensar em escala mundial, a maior parte dos países mais pobres não são necessariamente os mais violentos. Então, não há uma relação mecânica entre pobreza e violência. Claro que a melhoria dos indicadores sociais em uma comunidade é positiva, e isso é importante. Mas não que isso necessariamente vá resultar numa pacificação imediata da sociedade. O fenômeno do crime, da violência, tem um conjunto de peculiaridades, especificidades que precisam ser levados em conta, por isso que a pesquisa é tão importante. Você não tem um kit pronto, sabe? Um modelo pronto de política pública que deu certo no estado “x” e vai necessariamente dar certo em outro, que deu certo em um País e necessariamente, vai dar certo em outro, você tem que mergulhar um pouco mais nas especificidades daquele contexto local para entender a causa do crime. Se você prestar atenção, até em relação a bairros dentro de uma mesma cidade tem distinções e dinâmicas muito diferentes. A gente fala do crime como se houvesse algo homogêneo do ponto de vista territorial, mas o crime é um fenômeno que tem uma especificidade temporal e territorial muito forte. Nós estamos acostumados a ouvir que Alagoas é um estado violento, mas muitas cidades alagoanas não são violentas do ponto de vista do indicador. Não apresentam taxas de vitimização tão altas, tão significativas. Alguns municípios em Alagoas, especificamente, apresentam taxas muito altas de violência e por isso, digamos assim, o todo paga pela parte. E mesmo nos municípios, você vai ver que não há uma distribuição homogênea da violência em todos os bairros. Alguns bairros são mais vitimados que outros. Mesmo em determinados bairros grandes, algumas ruas são mais violentas do que outras, ou seja, há uma distribuição que não é homogênea do crime no território e é fundamental para a pesquisa, entrar nesse espaço. nosso principal know-how, é ajudar a instrumentalizar o tipo de conhecimento que produzimos para produção e promoção de políticas públicas. Não criamos política pública, não somos gestores ou tomadores de decisão, mas oferecemos um arsenal metodológico e analitico que podem gerar informações imprescindíveis para tal. Tanto que todos os lugares onde tiveram experiências bem sucedidas de controle da criminalidade e da vitimização, foram lugares onde a Universidade era parte integrante deste processo, exatamente porque é na Universidade que a gente vai encontrar um suporte para trabalhar e analisar isso.

Lenilda Luna: Sobre a avaliação de algumas políticas públicas, a Força Nacional, por exemplo, foi deslocada pra cá por um certo período, qual foi a avaliação? Como isso foi investigado pelo laboratório?

Emerson do Nascimento: A partir do laboratório, do Observatório de Prevenção à Violência da SEPREV-AL e junto a uma ex-orientanda minha do PPGS-ICS, a Anna Virgínia Cardoso, produzimos algumas análises sobre esse período da presença da Força Nacional de Segurança Pública em Maceió. A dissertação da Anna, por exemplo, que vocês podem consultar online, tratou do impacto da presença da Força Nacional sobre o Sistema de Justiça Criminal do estado de Alagoas. Ao longo do período, também analisei os inquéritos de homicídios produzidos pela Força, bem como, em função da longa estadia da Força no território, os conflitos que essa permanência estendida trouxe junto às forças policiais estaduais. Bom, a Força Nacional já estava em Alagoas antes de 2012, mas tomou um papel de destaque a partir do lançamento do Brasil Mais Seguro, sendo escalada como braço fundamental para combater a impunidade dos casos de homicídios no estado. Nesse período o próprio Ministério da Justiça falava em 5 mil inquéritos de homicídios aguardando investigação em Alagoas. Dentre as principais metas estabelecidas pelo Programa, podemos citar: a) reverter esses números a partir da investigação desses inquéritos que se acumulavam nas prateleiras das delegacias e b) desafogar a polícia civil para atuar sobre as novas ocorrências. Então, a Força Nacional veio para auxiliar com uma designação de polícia investigativa, para trabalhar em cima desse número de inquéritos pendentes que tinham aqui no estado, que eram muito grandes. Bom, um dos impactos mais positivos, digamos assim, da presença da Força Nacional foi que essa parte de elucidação de inquéritos de homicídios aumentou. Uma frustração do Programa é que os índices positivos de investigações concluídas recaíram mais para os homicídios recentes do que para os que aguardavam investigação. Destes, pouco mais de 10% foram concluídos com a indicação de materialidade e a realização da denúncia ao Ministério Público. Os outros 90% foram reunidos e “enterrados” numa delegacia especial. Fechamos essa pesquisa mais ou menos em 2016, 2017. À época, essa taxa de elucidação chegava em torno dos 30%, ou seja, tinha tido um impacto muito positivo. As próprias polícias locais tinham uma avaliação muito positiva dessa mediação com a Força. A presença da Força tinha causado impactos positivos, sobretudo do ponto de vista da melhoria das técnicas de operação e investigação. Mas nem tudo foram flores também, a Força estendeu sua permanência em Maceió por muito mais do que o previsto. Na verdade, a Força Nacional nunca permaneceu por tanto tempo em nenhum outro território nacional, a despeito de Alagoas. É claro que isso trouxe conflitos também junto às forças policiais locais, afinal, a Força Nacional tem uma hierarquia e uma estrutura de incentivos bastante diferenciada que conflitava, muitas vezes, com os interesses políticos e táticos das polícias estaduais. Contudo, grosso modo, considero que os benefícios dessa “parceria” foram maiores que estes problemas, afinal, junto a tudo isso veio um conjunto de melhorias trazidas pelo Brasil Mais Seguro, em que eu destacaria os investimentos de inteligência, a promoção de ações coordenadas e a obrigatoriedade de fazer as instituições promotoras da segurança no estado sentarem e dialogarem. Isso foi muito positivo para a época.

Lenilda Luna: Com relação a questão da mulher, também tem pesquisas que foram feitas para perceber essa presença da mulher no sistema prisional e também as taxas de feminicídio, de violência contra a mulher? Tem pesquisas sobre isso que foram produzidas pelo laboratório?

Emerson do Nascimento: Sim, estudantes pesquisadoras do laboratório produziram nos últimos tempos também, trabalhos relativas tanto quanto à vitimização de mulheres e o funcionamento da rede de proteção à mulher em Alagoas, quanto ao encarceramento de mulheres no estado. A Carla Serqueira, por exemplo, trabalhou com isso numa dissertação de mestrado que orientei. Nosso ponto de partida era discutir as possíveis razões que estavam diretamente relacionadas ao crescimento da taxa de encarceramento de mulheres no estado de Alagoas. Em 2015, essa taxa havia crescido mais de 250% e havia um claro indicativo que algo de grande impacto havia acontecido na estrutura do sistema criminal e carcerário em Alagoas que agora estava encarcerando muito mais mulheres. Carla observou o quanto essa taxa de encarceramento estava direcionada a uma transformação do papel da mulher dentro do tráfico de drogas, ou seja, as mulheres estavam ocupando um espaço cada vez mais significativo nas redes de tráfico e isso ampliava a visibilidade delas do ponto de vista das forças policiais, o que, inevitavelmente, provocava também um aumento da taxa de encarceramento. As incursões desta dissertação desenvolvida a partir do Laboratório de Estudos de Segurança também revelaram uma realidade preocupante, haja vista o número crescente de registros orais de violação de direitos por parte destas mulheres, bem como as dificuldades de ressocialização das mesmas. Mais recentemente, orientei a dissertação de Anne Caroline Fidelis sobre os feminicídios em Maceió. A Anne trabalhou com a configuração destas ocorrências, avaliando as condições situacionais que caracterizavam a maior parte desses homicídios de mulheres, sobretudo a partir de 2015, considerando a lei do feminicídio e o impacto que isso teria para Alagoas, e Maceió especificamente. Essa dissertação apontou ainda para o quanto a rede de proteção à mulher em Alagoas ainda é frágil e ineficiente, mesmo na capital. Imagine então no interior, onde a rede, muitas vezes, não existe institucionalmente! A fragilidade da rede, as razões que levam a rede a ser ineficiente, sob muitos aspectos, foi o ponto de inflexão do trabalho de conclusão de curso de uma outra estudante nossa, orientanda e integrande do laboratório: a Amanda Balbino, estudante de Ciências Sociais.

Lenilda Luna: Não é fácil trabalhar com realidades tão recentes. Como o senhor colocou, o feminicídio começou a ser estabelecido como lei, no sistema penal, a partir de 2015. Como é que faz esse comparativo? Como era antes de 2015 para estabelecer que essa mulher foi morta por uma violência de gênero, uma violência pelo fato dela ser mulher. Como fazer esse parâmetro?

Emerson do Nascimento: É exatamente esse o diferencial: a existência da lei. É possível levantar o número de homicídios de mulheres cometidos no Brasil e em Alagoas desde 1979,, quando é criado o Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde que é uma das nossas principais fontes de registro de mortalidade e vitimização no Brasil. É um dos bancos principais com que a maior parte dos pesquisadores trabalham. É claro que até então, antes da criação da lei, o registro de homicídios passava simplesmente pela identificação do sexo biológico, masculino ou feminino, e a gente conseguia separar, digamos assim, por sexo, essas vítimas. Naturalmente, ainda estamos longe da caracterização da distinção entre sexo e gênero no que diz respeito aos sistema de informação de mortalidade no Brasil, seja pela das secretarias municipais e estaduais de saúde, seja pelas secretarias de segurança pública. O que a lei cria é um elemento novo, do ponto de vista da tipificação do crime, porque diferente do homicídio cometido contra os homens ou mesmo dos homicídios que vitimam parte dessas mulheres, há um número significativo de homicídios cometidos contra mulheres que precisam ser distinguidos, especificados, pois estamos falando não de um homicídio doloso comum, mas de um homicídio que é potencializado por uma carga de ódio. Ou seja, a mulher é vitimada em função da sua condição de mulher, ou seja, a mulher foi vítima, acima de tudo, por ela ser quem ela é. Isso faz do feminicídio um homicídio diferente, posto que carregado de ódio pela condição de ser da vítima e potencializado pelo machismo e pelo sexismo, que reforçam a cultura de posse e controle sobre a mulher e o seu corpo por parte dos homens, sejam eles pai, irmão, companheiro, etc. Essa distinção precisa ser levada em conta do ponto de vista penal. E precisa ser levado em conta também do ponto de vista explicativo, porque você não está falando de um crime qualquer. Claro que qualquer crime contra a vida é terrível, mas você está falando de um crime que atenta contra a vida de alguém por alguém ser exatamente quem é.

Anne trabalhou com o conjunto dos inquéritos de homicídios cometidos contra mulheres nesse período em Maceió para tentar entender exatamente essa dimensão contextual, afinal, só entendendo a dinâmica configuracional desses crimes podemos tentar explicar por que ainda é tão difícil coibir essas ocorrências, sobretudo em Alagoas. De maneira geral, as secretarias de segurança, os sistemas de justiça estão aprendendo também a lidar com isso. Imagine, boa parte dos aparelhos são eminentemente constituídos por homens que muitas vezes não dispõe de todos os elementos contextuais e informativos para poder dizer se aquele crime foi de fato feminicídio ou se não foi. O próprio movimento feminista tem uma pluralidade muito grande de interpretações sobre o que é o feminicídio para além do conteúdo legal e penal do que está estabelecido. Tem desde as pessoas que defendem o feminicídio como todo e qualquer crime cometido contra uma mulher, independente se é na rua, se é em casa, se é um latrocínio, enquanto há algumas teóricas vão até argumentar que mesmo nas situações de latrocínio, a vitimização da mulher se dá pelo fato que ela possui um conjunto de elementos que para o algoz, tornam ela mais frágil e, portanto, a condição de ser mulher é parte integrante do conjunto das motivações que orientam mesmo esse tipo de crime. Enfim, a criação da lei não veio acompanhada ainda da capacitação necessária do quadro profissional dos agentes de segurança que, na grande maioria das vezes são constituídos, majoritariamente de homens e, não por acaso, têm dificuldades ainda de interpretar o fato e de compreender o conceito.

Lenilda Luna: Deve ser ainda mais complexo direcionar essa pesquisa para o que é violência direcionada à comunidade LGBT, essa pesquisa de dados é ainda mais complicada?

Emerson do Nascimento: Sim, porque você está falando de um tipo de violência que não tem ainda uma tipificação penal. Estamos falando de um crime que tem uma carga de ódio tal qual o feminicídio, pois mais uma vez estamos falando de um tipo de crime que é cometido contra alguém por alguém ser exatamente quem é. Mas, como não temos uma tipificação penal para esse tipo de crime, ele acaba sendo diluído junto com os outros homicídios dolosos, ou seja, ele cai numa vala comum com todos os outros homicídios. Embora esses homicídios sejam estimulados por razões outras que não podem ser ignoradas a hora de interpretar e julgar estas ocorrências.

No laboratório, desenvolvemos ainda uma dissertação sobre o tema da violência contra a população LGBT, trato aqui da dissertação do Adriano Nunes, que é também um estudante egresso da nossa Pós-graduação em Sociologia que orientei recentemente. O Adriano encarou um problema interessante: se não há tipificação penal, como se computa a violência homofóbica no Brasil? Estamos acostumados a ouvir falar nesses indicadores quando eles vêm a público, mas, como se estrutura a rede que possibilita que os grupos possam contar essas vítimas de homofobia visto que não dispunhamos de uma tipificação penal? Adriano analisou o impacto das primeiras organizações de movimentos gays no Brasil e em Alagoas, que tiveram a tarefa árdua de constituir uma rede integrada para computar as vítimas, mensalmente, desde a década de 80. Primeiro de forma rudimentar, usando mimeógrafo, recortes de jornal e pelo correio postal, até hoje em dia, de forma mais sofisticada, com o compartilhamento de informações via WhatsApp, sites e outros recursos mais rápidos para transferir informação. Fora isso, o Adriano explorou ainda o sentido e o significado desses crimes, as vias pelas quais se dá o processo de reificação e invisibilização dessa população e sua reprodução através das práticas reiteradas do machismo e dos modelos tóxicos de masculinidade.

Lenilda Luna: Essas formas de comunicação foram importantes, porque, eu imagino que para vocês pesquisadores, que vão para um banco de dados oficial tem ainda aquela dúvida se aqueles dados não estão mascarados porque é claro que muitas vezes os governos não querem que a violência seja tão evidente ou seja toda ela colocada ali da forma mais crua possível. Muitas vezes existe uma dúvida sobre se os dados estão realmente correspondendo a realidade ou não. Tem então, hoje, todos esses mecanismos de pesquisa, a internet e várias outras ferramentas, que foram criadas que podem ajudar o pesquisador a entender esses bancos de dados oficiais com outras informações?

Emerson do Nascimento: Por exemplo, nos últimos tempos os Governos Estaduais têm recebido uma pressão muito grande, muitas vezes do próprio Governo Federal e outras vezes até da opinião pública ou dos movimentos e organizações sociais em torno da necessidade de disponibilizar informação e oferecer possibilidades de controle dessa informação, de alguma forma, por órgãos externos. E não somente os aparelhos de segurança são pressionados por isso, muitas vezes, os próprios governadores recebem pressão de órgão nacionais e até mesmo internacionais em defesa da transparência dos dados de vitimização, por exemplo. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que é uma instituição que já angariou uma profunda legitimidade tanto entre os pesquisadores da área como na própria sociedade civil, é um instituto que divulga relatórios anuais sobre vitimização no Brasil. Nos últimos anos, o FBSP criou, inclusive, um parâmetro de avaliação da qualidade dos dados dos estados e aí, cada relatório, em geral, tem um ranking de qualidade da informação, onde todas as unidades da Federação são avaliadas a partir da qualidade do dado que disponibilizam publicamente. Alagoas, inclusive, já por alguns anos apontou como um dos estados com o melhor registro de informação do sistema de segurança do País, sobretudo depois de 2012, quando teve um investimento maciço disso tanto do Governo Federal quanto da pressão da opinião pública e também uma cobrança por parte desses órgãos de que o próprio estado garantisse uma oferta de informação sobre bases seguras. Essa questão da qualidade do dado é uma variável muito importante, pois não poucas vezes, muitos institutos respeitáveis estabelecem e publicizam rankings de vitimização do tipo cidades ou estados mais violentos do Brasil, sem levar em conta esse problema básicos: há estados que não são comparáveis por que a qualidade dos dados deles não são correspondentes. Ter um parâmetro de avaliação da qualidade do dado é básico e fundamental. Afinal, por trás de um número há uma estrutura de gestão e governança que, se não funciona como se espera, cria um número distante da realidade. E aí, aquele recurso que você dispõe para interpretar essa realidade é frágil e contraproducente. Imagine: a depender do grau de subnotificação do número de homicídios de um dado estado, sua dedução pode ser que aquele estado é mais pacífico do que outro que mantém uma rede rigorosa de registros.

Lenilda Luna: Professor, com relação também às denúncias dos movimentos sociais, como é que demandam para os pesquisadores? Por exemplo, os movimentos sociais negros, eles falam sempre na imprensa e em todos os meios de um genocídio da população negra, principalmente dos jovens negros. Como é que isso é constatado nas pesquisas científicas e sociais?

Emerson do Nascimento: Esse é um ponto interessante, pois nos últimos relatórios expedidos, tanto por organizações nacionais quanto por internacionais, temos um cenário especial no que diz respeito à relação entre homicídios e população negra, peculiarmente aqui em Alagoas. É consenso e é sabido que a grande maioria dos homicídios cometidos no Brasil repousam sobre a população pobre e periférica das nossas capitais e regiões metropolitanas, mas essa população para além das configurações de sexo e idade, também possui fortes marcadores sociais, pois pelo menos 80% dessas vítimas são ditos negros ou pardos. No caso de Alagoas, e isso é impactante, apesar de termos uma redução nos últimos anos da taxa de homicídio do estado - já chegamos a taxas exorbitantes e já estivemos no primeiro lugar no ranking, como estado mais violento do Brasil por longos 7 anos - estamos longe ainda de celebrar o feito. É óbvio que menos mortes é e sempre será melhor que computador mais óbitos. Cada vida salva é uma conquista, mas considerando os dados dos anos de 2017 e 2018, a segregação alagoana tem mostrada a sua cara mais cruel. À despeito da redução do número de homicídios no estado como um todo, o impacto recaiu sobretudo sobre a população branca. Há de se preocupar muito com isso porque o cenário aponta para a configuração de um cenário especialmente perverso para a população não-branca. E, diga-se de passagem, não estamos falando de qualquer estado, mas do estado de Alagoas, uma terra que incorpora toda uma representação e uma simbologia especial para o movimento negro, pois aqui a escravidão encontrou seus maiores e principais eixos de resistência política na figura dos quilombos. Isso não é e não pode se tornar tolerável! Não é admissível que a terra de Zumbi, a terra do Quilombo de Palmares se torne o território mais perigoso para um jovem negro por que as chances de vitimização desse aqui sejam maiores do que qualquer outro estado. E isso não é o meu ponto de vista, é o indicativo de relatórios nacionais e internacionais.

É estarrecedor, mas é isso que os relatórios apontam: a taxa de homicídio do estado caiu sobretudo, para os brancos e cresceu para o universo da população não-branca, aumentando o fosso que separa esses grupos. Óbvio que o movimento negro estadual não tem visto e sentido isto de forma calada e passiva. Há liderança políticas junto ao movimento negro tem chamado a atenção pública e política para este problema e com toda a razão, nesse aspecto. O principal eixo de embate político nesse campo tem sido a denúncia do que se chama de um genocídio negro. Não por acaso, enquanto professor, escuto referências ao termo inúmeras vezes dentro da sala de aula, mas tenho algumas restrições ao seu uso e entendimento, particularmente.

Eu acho absolutamente legítimo que o termo seja usado do ponto de vista político, eu acho que ele tem um apelo e uma dimensão política que é importante e significativa e chama atenção para um problema que é gritante e em se tratando de um tema de pauta pública, quanto mais visibilidade melhor, mas seria isso um genocídio mesmo? O que é genocídio? Seria adequado o emprego do termo do ponto de vista analítico? Eu acho que não. Genocídio, do ponto de vista etimológico, designa o extermínio deliberado, público e intencional de uma população orientado por motivações étnicas, raciais, religiosas, etc. Eu acho que o nosso caso é diferente. Não porque seja menos gravoso. Pelo contrário, eu acho que nosso caso é até mais gravoso que isso (se é que algo pode ser mais gravoso do que o genocídio de Estado). Mas falo que é mais gravoso no sentido de que não existe uma ação deliberada do Estado a favor do extermínio da população negra. Se assim o fosse, teríamos os Direitos Humanos como ferramenta de luta política. No nosso caso e aqui não falo somente de Alagoas, mas estendo para o resto do país, o problema é mais complexo por que a vitimização dessa população segue “condizente” à ordem democrática e à existência do Estado Democrático de Direito.

Não se trata mais de denunciar que o Estado Democrático de Direito é ineficiente, pois para parcelas dessa população ele funciona sim. O problema é mais gravoso por que estamos falando agora da configuração de uma nova ordem social, a vitimização de milhares de pessoas por ano, na sua grande maioria, negras e pardas, mas sem que isso provoque qualquer incômodo de ordem política ou jurídica. Há em curso um processo progressivo de invisibilização e reificação dessas pessoas. Há em curso a constituição de uma necropolítica, aquilo que o pensador camaronês Achille Mbembe uma política de Estado que estabelece quem ele deixa viver e quem pode morrer. E aqui não estamos falando de um Estado que ordena o sacrifício, que determina o extermínio - por isso minha resistência em enquadrar tal fenômeno como genocídio -, mas um Estado Soberano que estabelece quando e onde a exceção pode ser a regra, que faz os demais compreenderem que as vidas de uns valem mais que as vidas de outros, que para algumas mortes se reivindica justiça, mas para outras não. Para outras, impera a exceção, a ideia de que são essas vidas supérfluas. Um estado gere a vida da população de modo a fazer com que alguns vivam enquanto alguns morrem. Um Estado que é igualmente responsável, tanto pelo que faz, quanto pela omissão, entendendo aqui que a omissão do Estado também é uma forma de decisão política. Não investir, por exemplo, em política pública de segurança para uma determinada parcela da população, para um determinado segmento, para um determinado grupo, num determinado território, também é uma forma de fazer política. Deixar à deriva, à margem, também é uma decisão política, é uma forma de estabelecer pela via legal formas de fazer viver e deixar morrer parcelas dessa população, consideradas, historicamente, inimigas do Estado e do restante da sociedade. E para o choque de nós, homens e mulheres do século XXI, estas exceções e violações convivem com a ordem democrática, o sistema representativo, a autonomia do judiciário e a constitucionalidade de garantias jurídicas individuais e coletivas. É isso que pra mim explica que sigamos com nossas vidas normais, todos os dias e não questionemos a cifra de 65 mil mortos por ano no Brasil.

Lenilda Luna: Por isso aquela insígnia Vidas negras importam, é relevante. Precisamos destacar a importância dos grupos que vivem à margem.

Professor, agradeço sua presença aqui no programa Ufal e Sociedade.

Emerson do Nascimento: Eu que agradeço. Um prazer vir. Estou às ordens.

Lenilda Luna: Nós voltamos na próxima segunda-feira às 11h com reprise às 17h.

Ouça a entrevista aqui

Palavras-chave
Ufal e Sociedade